sexta-feira, 29 de julho de 2022

Elvis

Ídolo Reverenciado

Empolgante com muito frenesi e emoção à flor da pele, politicamente incorreto, assim é a cinebiografia Elvis que conta a vida e a carreira artística do músico que se torna o Rei do Rock’n’Roll. Interpretado por Austin Butler, em atuação antológica e irretocável, oferece uma performance treinada por dois anos com carisma e magnetismo bem próximos de Elvis Presley. O diretor australiano de 59 anos Baz Luhrmann traz novamente sua marca registrada característica de filmes eletrizantes com sensações intensas e de visual forte, entre os quais estão Vem Dançar Comigo (1992), Romeu+Julieta (1996), Moulin Rouge (2001), Austrália (2008) e O Grande Gatsby (2013). Os desafios para uma obra com a complexidade da trajetória do biografado e seus malabarismos de palco com inúmeras imitações foram um grande desafio para o cineasta e toda a reverência deste fenômeno cultural que ainda causa suspiros em seus abnegados fãs, embora ele tenha dito no transcorrer do longa como um desabafo angustiante: “ninguém vai se lembrar de mim, nunca fiz nada duradouro, nunca fiz um filme clássico”.

O realizador faz uma narrativa admirável, com seu olhar pessoal, do astro nascido em 1935, e morto em 16 de agosto de 1977, na cidade de Memphis, situada às margens do rio Mississipi, no sudoeste do Tennessee (EUA), famosa pela influência de blues, soul e rock'n'roll que lá se originaram. O filme mostra a admiração de Elvis por B.B. King, Johnny Cash, Big Mama Thornton, Little Richard e Fats Domino, pois eles gravaram álbuns no lendário Sun Studio. A mansão Graceland da família Presley ainda é uma das grandes atrações local. O cantor gravou 18 canções, terceiro que mais vendeu discos, atrás apenas dos Beatles e de Michael Jackson. Participou de 31 filmes sem grande sucesso como ator. Seu show especial na TV Aloha From Havai em 1973 superou a audiência do homem descendo na Lua em 1969.

Construído de maneira que beira uma denúncia, numa descrição contundente, às vezes poética e em outras reveladoras, faz um passeio pela conturbada trajetória do personagem-título, através de versões e fatos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Ou explicar didaticamente situações evidentes, imprime ótima velocidade num clímax certeiro para impactar a plateia. Lança um olhar sombrio de lembranças do passado, sem deixar de mostrar o início da carreira e seus derradeiros dias, já abalado por crises existenciais como a enfermidade da alma em frangalhos, tentando voltar aos palcos que o legitimou como um autêntico personagem de show business com sua técnica perfeita de palco através de seu rebolado e interpretação que levava seus fãs para uma catarse coletiva. Priscila (Olivia DeJonge) foi o grande amor de sua vida, desde os 14 anos, fonte de inspiração e uma das pessoas mais importantes para ele, que resultou no nascimento de uma filha. Mesmo em um papel secundário, demonstra atormentação pela fragilidade da saúde do companheiro decorrente das intoxicações por medicações fortes para mantê-lo sempre em pé e disponível para cantar e encantar seu público com os hits Suspicious Mind, I Can’t Help Falling in Love, e a última canção Unchained Melody, entre tantos com toda aquela energia pulsante, pouco se importando com dinheiro.

Luhrmann enfatiza as cenas de maneira impactante para atingir em cheio os sentidos auditivos e visuais com uma estrondosa pirotecnia estética exagerada de colagens, cores e sons, com movimentos alucinados de câmeras com elipses de edição às mancheias, porém palatável para quem venera o ídolo, pouco se importando com sutilezas e carícias agradáveis. Nada é implícito, tudo é explícito, sem ironias finas, mas com denúncias para fustigar e perturbar mesmo o espectador, desde a juventude com seus ternos cor de rosa, passando pelo uniforme militar e as roupas pretas de couro. Instiga com a morte precoce da mãe, o alistamento no Exército, a ida coagida para Alemanha por dois anos, logo após fazer um show que buscava a liberdade de expressão para dançar e requebrar sem as amarras da censura. Inspirou-se desde a infância na música de origem negra e nas lembranças de um pastor evangélico que entrava em transe nos cultos. Esta mescla usada com o objetivo de cantar deste futuro showman incomodava os conservadores e as famílias tradicionais de uma sociedade hipócrita machista, recheada de tabus, além do viés racista. Há momentos históricos retratados de uma época marcada pela violência como o assassinato de Martin Luther King em Memphis, passa pelas tragédias da atriz Sharon Tate e o senador Robert Kennedy, vitimados pela intolerância e o ódio intransigente.

Elvis é um retrato pungente documentado da vida amarga de uma estrela e sua fervorosa vocação como cantor, com todo seu magnetismo e brilho pessoal inigualável no universo cultuado do rock’n’roll que o tornou uma majestade cultuada até hoje. Uma ode para os apreciadores da arte na companhia de um genial artista com suas dolorosas lacunas pela vida nas armadilhas do destino neste belo tributo. Está bem acima de Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher, que mostrou no filme biográfico o cantor britânico Freddie Mercury e o grupo de rock Queen, de maneira superficial e pouca coragem para uma abordagem mais profunda; supera Rocketman (2019), de Dexter Fletcher, que segue desde a origem de Elton John até a relativa libertação dos problemas que teve na infância, a relação com o compositor e parceiro profissional Bernie Taupin e o empresário e ex-amante John Reid.

O mérito da trama que acompanha décadas da vida do artista é não esconder nada, desde a ascensão à fama, até as tentativas de retorno como objetivo maior, para relembrar os episódios inesquecíveis de sua consagrada carreira. Inclusive o relacionamento tóxico com seu empresário controlador, Coronel Parker (Tom Hanks, ótima atuação com enchimentos e próteses para torná-lo uma figura caricata). O mergulho na dinâmica entre eles por mais de 20 anos de parceria, numa turnê pelos EUA, especialmente num hotel internacional em Las Vegas. Aflora em tom de indignação o mau-caratismo deste pseudoprofissional, apátrida, sem passaporte, um sanguessuga que deixaria indeléveis cicatrizes com marcas eternas no destino da vida do cantor que nunca fez show ou turnê fora dos Estados Unidos. As escolhas difíceis de Elvis que o marcou como uma saga tortuosa estão presentes nos problemas com cobranças severas do seu mentor, bem retratadas como elemento central da trama. A frustração de um sonho que levou para o túmulo diante das idiossincrasias daquele a quem confiou como um segundo pai, pois o seu verdadeiro era uma pessoa subserviente, que só acordou e tomou pulso da situação com a morte do filho, então foi buscar na justiça ressarcimento dos milhões de dólares surrupiados pelo Coronel Parker em contratos absurdos para benefício próprio. Mesmo negando as falcatruas realizadas sob a ótica do empresário bonzinho, fica evidente que o artista se tornou uma figura manipulada. Um filme intenso e arrebatador.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Festival Varilux Cinema Francês (O Acontecimento)

 

O Acontecimento

Um dos mais aguardados lançamentos do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano era O Acontecimento, segundo longa-metragem da diretora Audrey Diwan, que também assina o roteiro em parceria com Anne Berest. Uma adaptação do romance homônimo de Annie Ernaux, é a história vivida pela escritora, hoje aos 81 anos, ambientado na França, em 1963. Vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza de 2021, sendo a segunda diretora francesa a receber esse prêmio. Também abocanhou o prêmio da crítica no mesmo festival do ano passado. Antes de se tornar cineasta, trabalhou como editora, jornalista e roteirista. Escreveu vários livros, dentre eles La Fabrication d’un mensonge, que recebeu o prêmio René Fallet, em 2008. Também faz parte do Collectif 50/50, uma ONG francesa que promove a igualdade entre homens e mulheres na indústria cinematográfica.

O drama conta a saga de Anne (Anamaria Vartolomei- de atuação estupenda, recebeu a láurea de atriz revelação no César, o Oscar francês), onde uma estudante promissora de literatura que adora dançar, pobre, acaba por ter uma gravidez indesejada. Resolve abortar, mas seus colegas, amigos e os médicos irão se colocar contra sua decisão irrefutável. Está aparentemente pronta para fazer qualquer coisa para colocar em prática seu desejo, pois entende que não está preparada para a maternidade naquela ocasião fora do contexto programado, tendo em vista que seus estudos são prioridade. Aquela boa aluna começa a desabar e suas notas são cada vez piores diante das fragilidades que povoam sua mente de ser mãe. Entende que uma criança naquele momento iria brecar seus planos para o futuro. Mesmo alegando que é dona de seu próprio corpo, ela busca sozinha seu inarredável objetivo num universo negacionista. Há uma corrida contra o tempo que passa rápido, além do desafio da lei que proibia terminantemente o aborto provocado, exceto o voluntário, como menciona os obstetras. Na França, a interrupção voluntária da gravidez só foi legalizada em 1975.

A realização tem requintadas pitadas de suspense psicológico, dirigido com sobriedade, de maneira nua e crua, vai direto ao ponto, com traços autobiográficos tanto da cineasta como da escritora. A diretora constrói um universo perverso advindo do tempo que passa cronologicamente a cada semana da gestação, até chegar a nove semanas. Tempo este que vai se esgotando, até receber uma indicação de uma colega para procurar uma parteira de um subúrbio. O périplo angustiante da protagonista começa na cama da casa, uma espécie de clínica clandestina de fundo de quintal, passando pelos vasos sanitários do alojamento estudantil da faculdade até ser levada inconsciente para o hospital. O estômago do espectador embrulha por vezes, mas Diwan acompanha a personagem central com dignidade, posicionando a câmera de maneira bem próxima, num panorama com clímax angustiante, dá para ouvir a respiração ofegante que entra na alma para um olhar aterrorizante, tanto do espectador como da jovem.

A temática do drama é polêmica por retratar a decisão da interrupção da gravidez voluntariamente, que irá trazer uma notável contribuição ao cinema, em que já teve ótimas obras de forma semelhante. O tema por ser indigesto e controvertido fez furor com o cineasta romeno Cristian Mungiu em 4 Meses,3 Semanas e 2 Dias (2007), retratou em 1987, nos últimos dias do comunismo, duas jovens que dividem um quarto num dormitório estudantil, quando uma delas descobre que está grávida, mas o aborto é ilegal na Romênia. Consegue uma pessoa que irá fazer o procedimento, mas ao saber do estado adiantado, aumenta as exigências e cobra um preço que as colegas não estão preparadas para pagar. Eliza Hittman dirige com contundência Nunca, Raramente, Ás Vezes, Sempre (2020), sobre duas amigas e primas inseparáveis que viajam pela rural Pensilvânia (EUA), quando uma delas inesperadamente engravida, mas é confrontada com uma legislação conservadora, sem piedade de mulheres que tentam abortar. O realizador argentino Pablo Giorgelli também retrata de maneira crucial o longa Invisível (2017), para contar a história de uma garota de 17 anos que mora com a mãe, em um pequeno apartamento no bairro de La Boca. Descobre que está grávida de um homem bem mais velho, casado e seu chefe, onde terá uma difícil decisão: fazer ou não o aborto.

Um dos grandes méritos de Diwan é não deixa cair no melodrama fácil e apelativo. Deixa transcorrer com imparcialidade as situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente da tensão e da ansiedade se intercalarem lentamente, com a exposição visceral de um filme que mostra a dureza moralista de uma sociedade que se apropria nefastamente dos corpos das mulheres. São os elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado e asfixiante da batalha claustrofóbica de uma mulher livre, mas ao mesmo tempo reclusa pela opinião pública, como visto recentemente no caso de uma atriz global que viu seu nome divulgado nas redes sociais, teve sua privacidade invadida e devastada sem piedade, por querer doar o recém-nascido fruto de estupro. Nos EUA, a Suprema Corte derrubou na última semana de junho deste ano uma decisão anterior que virou lei desde 1973, conhecida como Roe vs. Wade, que permitia a prática do aborto. Também na semana passada, uma menina de 11 anos, que foi estuprada em Santa Catarina, teve negada por uma juíza a interrupção da gravidez, obtendo em grau de recurso o direito de realizar tal prática permitida legalmente pelo Código Penal.

O Acontecimento é uma magnífica obra que transforma uma ácida história de um drama social de resistência e redenção da mulher, muito bem articulada num roteiro enxuto pela marca de uma diretora promissora na carreira, que cria uma digna realização humanista, com tintas dolorosas. Traz uma intensidade de uma narrativa pela ótica de uma mulher, para mesclar situações presentes com um futuro que tanto almejou a protagonista ao tentar driblar as adversidades. Apresenta uma invejável força de seu interior e uma resiliente capacidade emocional que quase se esvai, e quase se desequilibra, por estar angustiada pelos transtornos diante da iminência do rompimento com o amanhã e a probabilidade da perda desta batalha. Uma reflexão magistral sobre a condição humana feminina e sua meta de vida se fragilizando, embora tenha uma pujança feroz estimulante de ser livre e impor sua vontade de um futuro pela escolha pretendida da liberdade inegociável desta obsoleta realidade ainda existente ditada pelos conservadores e moralistas de plantão. Um filme imperdível.