quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Meu Nome é Gal

Ascensão de uma Estrela

Meu Nome é Gal se justifica como uma das melhores realizações que estrearam neste ano em que o cinema brasileiro atinge o ápice meritório de obras indiscutíveis. Fica ao lado de outros dois excelentes documentários indicados ao Oscar de 2024: Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você (2022), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay e Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho. Eis uma cinebiografia extraordinária sobre a ascendência aos píncaros da glória de Maria da Graça Penna Burgos Costa, ou Gracinha como era chamada pela mãe protetora, que virou a grande estrela Gal Costa (26/09/1945 - 09/11/2022). A protagonista acanhada é desnudada desde sua chegada ao Rio de Janeiro no início dos anos de 1960, oriunda de Salvador (BA), e está longe de ser uma obra chapa branca. Retrata a mutação da tímida jovem cantora que a transformaram tanto esteticamente como sua participação, embora discreta, na efervescência da política brasileira sob o regime ditatorial do golpe de 1964, na promulgação do AI-5 e as prisões por atacado de quem contestava o estado de exceção instaurado no Brasil. Sentiu na pele e passou por um período de depressão, pois sofreu muito com os exílios em Londres de seus melhores amigos e incentivadores Gilberto Gil (Dan Ferreira), Caetano Veloso (Rodrigo Lelis, muito idêntica a personificação, tanto na semelhança física, quanto na linguagem) e sua mulher Dedé Gadelha (Camila Márdila).

As diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira (que também assina o documentário O Nome Dela é Gal, em 2017) passam em revista com sutileza a vida pessoal, artística e a trajetória da renomada artista biografada, num recorte de 1966 a 1971. Talvez o público saia da sessão sem sentir que conseguiu conhecê-la de forma total. Porém, percebe com clarividência a timidez como uma característica que vinha atrelada em sua personalidade, quando se falava sobre ela, mas a artista tinha muitas outras nuances que foram bem encarnadas pela perfeita interpretação. Uma cena marcante é quando a mãe (Chica Carelli) descobre que a filha não se relaciona apenas com homens. As sequências que envolvem as duas mostram a sensibilidade de Gal e a vontade de se libertar. Um filme para todas as gerações, que humaniza a protagonista num momento difícil pela árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose em direção ao renascimento, como afirma seu empresário bem humorado Guilherme Araújo (Luis Lobianco) -sem o estereótipo do cafajeste já visto em vários filmes, e responsável pelo nome artístico Gal Costa- sobre a jovem talentosa de 20 anos de idade como a “borboleta que sai do casulo”.

Cabe ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio, onde as canções mais famosas de sua trajetória são mostradas dentro de um contexto social perigoso para o artista, como bem retrataram os documentários Chico-Artista Brasileiro (2013), de Miguel Faria Jr., e Elis (2015), de Hugo Prata. Além de Gil, Caetano e Dedé, ela teve o apoio de Maria Bethânia (Dandara Ferreira), mas sofreu zombarias do diretor de televisão (Fábio Assunção), em seus primeiros passos para a música profissional até atingir a fama. Formam o icônico movimento da Tropicália em que ela é uma das principais vozes, onde se realçava as roupas coloridas e diferentes das que ditavam a moda na época, com resistência pela introdução da guitarra elétrica, logo associada ao rock and roll dos EUA e Inglaterra. Uma quebra de paradigmas de comportamentos, cultura, subversão e evolução.

Merece um capítulo à parte a magistral atuação de Sophie Charlotte, conhecida por personagens secundárias insossas em novelas e seriados. Atinge o apogeu com o maior papel de sua carreira, mesmo que tenha dublado a lendária canção Baby num dos festivais da época, de Caetano Veloso, gravada no histórico álbum Tropicália (1968), composta para a irmã Bethânia, que optou por não participar do disco (Você precisa saber da piscina, Da margarina, da Carolina, da gasolina, Você precisa saber de mim, Baby, baby, eu sei que é assim, Baby, baby, eu sei que é assim, Você precisa tomar um sorvete na lanchonete, Andar com a gente, me ver de perto, Ouvir aquela canção do Roberto...). A maioria das outras músicas da trilha sonora interpretou com elegância e finesse. Atua com uma impressionante dramaturgia, muito além da expectativa. Não é fácil encarnar uma gigante como Gal Costa, que deu seu aval à atriz por considerar o timbre de voz muito próximo do dela. Demonstrou soberbo vigor físico e psicológico para uma construção despojada que atinge a exuberância com seus cabelos encaracolados e sua voz meiga, os trejeitos, o sorriso, a afinação, sem tentar imitar, com o gestual marcante e intimista da emblemática artista baiana sensível, resguardada e poética.

Com a bela fotografia de Pedro Sotero, bem montado por Eduardo Serrano, o dinâmico roteiro de Maira Bühler, Lô Politi e Mirna Nogueira, as diretoras primam pela sensibilidade e as sutilezas sugeridas com algumas revelações. Em entrevistas, Gal já havia contado que, quando criança, costumava cantar com a cabeça enfiada dentro de panelas em sua casa, com a intenção de se ouvir e treinar a própria voz, os tons e a respiração. Além dos aspectos convulsivos da política abordado na época, quando se faz um pontual panorama através de um resumo sobre o anacrônico regime ditatorial que passou sem deixar saudades, é um filme para ser degustado com as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira, bem compilado no desfecho junto aos créditos finais. O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador nesta imersão que beira ao sensorial pelos caminhos da melhor cantora dos Brasil, pelas palavras de João Gilberto, também para grande parte da crítica e do público, embora haja uma disputa acirrada com a não menos notável Elis Regina. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos como poemas profundos. É proibido levantar o volume da voz para não atrapalhar o êxtase. Apesar das tensões advindas do período em que se passava de iminente ameaça aos artistas musicais, a história faz estes registros para contar a turbulência da ditadura em sincronia com a importância do legado da estrela. Um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades de uma estrela, por isto se insere como uma cinebiografia singular, que certamente estará entre os 10 melhores filmes no final do ano.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você

 

Dois Gênios

O veterano Nelson Pereira dos Santos dividiu a direção com a neta de Tom Jobim, Dora Jobim, ao realizar com méritos o documentário A Música Segundo Tom Jobim (2012). Optou pela boa música e o acervo fotográfico da carreira deste cultuado cantor e compositor brasileiro que conquistou o mundo musical e se consagrou como um dos ícones de todos os tempos, cantando em português e muitas vezes também em inglês, num formato de videoclipe essencialmente com música nas diferentes vozes e interpretações em vários idiomas, entre eles o italiano, o francês e o inglês, inclusive em parceria com Frank Sinatra. Já o diretor Hugo Prata quando começou a trabalhar no longa-metragem Elis (2015), encontrou algumas dificuldades para concluir esta magnífica cinebiografia sobre a maior cantora do Brasil de todos os tempos, para maioria da crítica e parte do público. Elis Regina cantou samba, disco music e consagrou-se definitivamente na MPB. Detentora de uma voz afinadíssima e cristalina, colocava muita emoção na interpretação com seus gestos coreográficos no palco, que a tornou uma cantora completa pelos seus recursos técnicos. Mulher de personalidade forte, por isto o apelido de “Pimentinha”, logo se impôs no universo machista para viver paixões arrebatadoras. Sempre quis ser a melhor, batalhou lutou, foi debochada, espezinhada e chamada de “Hélice Regina”- alusão pelos movimentos de braços girando como pás para o eixo no espaço- pelo seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), um mulherengo inveterado, em um casamento conturbado por brigas violentas e algumas baixarias.

Agora Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay dividem a direção para unir em Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você estas duas estrelas do mundo musical. Contam através de vídeos caseiros e imagens da gravação do histórico álbum lançado em 1974, que juntou a cantora Elis Regina com Antonio Carlos Jobim (popularmente conhecido como Tom Jobim). Gravado em mais de cinco horas por quase 50 anos pelo produtor e empresário da cantora, à época, Oliveira apresenta os registros em Los Angeles, nos Estados Unidos e diz: "Chegando lá eu percebi que eu tinha que filmar aquilo. Percebi que eu estava diante de um evento histórico". O filme retrata uma variedade de materiais inéditos, que permaneceram guardados, e que mostram todos os bastidores com os conflitos e as diferenças da dupla de gênios. Por muito pouco o álbum não foi interrompido, mas que só foi até o fim graças aos diálogos ásperos, às vezes rancorosos e em outros com sorrisos amarelos para obter algumas concessões dos dois. O resultado não poderia ser melhor nestes momentos maravilhosos para deleite do espectador nesta imersão sensorial, com a bela fotografia de Fernando Duarte e o ótimo roteiro de Nelson Motta. Apesar das tensões musicais, a história fez estes registros singulares de uma das mais belas interpretações que dá para classificar como extraordinária, em um momento divino e satânico, onde Tom manipulava as peças com seu estilo clássico, por vezes intransigente, como nos arranjos das canções realizadas por César Camargo Mariano, marido à época da cantora, que não aceitava o piano elétrico do músico.

Eis um dos maiores, se não o melhor documentário musical de todos os tempos realizado no Brasil. Entre tapas, beijos e ciúmes se fez um histórico disco com a obra-prima Águas de Março, interpretada com elegância sóbria pelos dois titãs em um dueto antológico, é uma das canções brasileiras mais regravadas. O filme conta o início turbulento dos trabalhos, os acertos e a consagração final de um trabalho impecável. Os diretores conseguem com habilidade fugir da realização chapa branca. Para isto, dá o direito da plateia sentir a fogueira de vaidades nos bastidores. Em uma das cenas,Tom aparece num programa de televisão onde é perguntado, mas nega, se é verdade que teria dito: “Esta gaúcha ainda cheira a churrasco”. No contraponto, Elis teria sugerido a Tom que: “Bossa Nova é para quem não sabe cantar”. Um filme que instiga e arrepia, pois ninguém levanta da sessão de cinema até o último crédito ao som da inesquecível canção. Fica a sensação de lembrar com sensibilidade as sutilezas sugeridas, os antagonismos, e por fim o êxtase. Para lavar a alma e deixar os ombros mais leves, e sorver as doces e saborosas melodias com o gosto e a marca brasileira deste filme que conquistou a crítica e foi reconhecido como o Melhor Filme Brasileiro na 46ª. Mostra de São Paulo do ano passado, onde recebeu elogios e aplausos merecidos. Sua jornada começou com exibições especiais no Festival do Rio 2022. A produção também atraiu atenção internacional ao ser apresentada no Marché du Film do Festival de Cannes. Representará o Brasil no Oscar de 2024 na categoria de Melhor Documentário.

Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você mostra com elegância admirável as alfinetadas, ironias, sarcasmos, irreverências e até lágrimas, tudo com delicadezas essenciais. André Midani, Roberto Menescal, João Marcelo Bôscoli Filho, filho de Elis, e Beth Jobim, filha de Tom, manifestaram suas opiniões sinceras ao serem entrevistados. Uma obra para todas as gerações, tendo como marco histórico a gravação do célebre disco em 1974, que humaniza os dois personagens centrais diante da magnânima superação que resulta no profundo apaixonamento artístico entre eles. Vale ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio. Não é um documentário somente para os fãs de Tom e Elis, mas para todos os apreciadores do refinamento da música de qualidade, sem gritos e histerias, apelações ou grotescas baixarias. As interpretações soam como sussurros nos ouvidos. Para os que não gostam deles, ao assistir poderão ter a grande chance de mudar alguns conceitos equivocados. Sobre os que estão em dúvida se gostam ou não, dificilmente deixarão de aderir e cantarolar. Ainda que não ganhe festivais, talvez nem ousasse tal intenção, mas ficará registrado na memória o inesgotável poder de criação, pois os gênios nunca deixam secar a fonte e estão sempre presentes para seus admiradores contumazes e até possíveis detratores.