terça-feira, 30 de abril de 2024

Os Colonos

Massacre Indígena

Vencedor do prêmio FIPRESCI da seleção Un Certain Regard no Festival de Cannes 2023, indicado para representar o Chile no Oscar de Melhor Filme Internacional, Os Colonos pode ser visto na plataforma do MUBI. O longa-metragem de estreia na direção de Felipe Gálvez Haberle, que também assina o enxuto roteiro em parceria com Antonia Girardi e Mariano Lilinás, explora os temas da colonização, da violência e do extermínio sofrido pela população indígena na fronteira chilena com a Argentina. Ambientado em 1901, na Terra do Fogo, através da fascinante fotografia do diretor italiano Simone D’Darcangelo que capta lindas imagens com paisagens montanhosas deslumbrantes, para retratar a brutalidade nas fronteiras destes dois países por conta da demarcação tingida com sangue e muita perversidade. Um épico com ingredientes de um faroeste revisionista que lança um olhar corajoso para um triste passado no embalo da instigante trilha sonora de Harry Allouche. O cenário enfatiza um lugar bucólico, às vezes inóspito, no qual os invasores escravizam e matam os indígenas, que lutavam pelos seus direitos numa batalha inglória e desproporcional pelas suas terras. Eram guerras pelas demarcações que colonizavam nas fronteiras do sul da América Latina, mas que surtiria resultados discutíveis dos países latinos independentes.

A trama conta a história das crescentes tensões de três cavaleiros contratados por um rico proprietário de terras de um imenso rebanho de ovelhas, conhecido pela alcunha de rei do "ouro branco", José Menéndez (Alfredo Castro), para "civilizar" a população indígena da região. Na companhia de um truculento tenente escocês travestido de britânico, Mac Lennan (Mark Stanley), do mercenário racista norte-americano, Bill (Benjamin Westfall), está o emérito atirador mestiço silencioso com boas sobras de moral naquele lugar sem lei, Segundo (Camilo Arancibia), que logo irá perceber as reais intenções da missão a ser cumprida, ou seja, expulsar a qualquer preço a população nativa daquelas terras desejadas. O historiador espanhol José Luis Alonso Marchante, no livro "Menéndez, Rey de la Patagonia", conta que a extinção do povo Selk'nam, conhecido como Onas, na Patagônia, foi um extermínio planejado por José Menéndez, a quem é atribuído o desenvolvimento econômico no extremo sul do Chile. Há muitas semelhanças tanto temática como geográfica com Zama (2017), da badalada cineasta argentina Lucrecia Martel, que abordou a história de um homem amordaçado por ele mesmo num contexto ambientado em uma região pantanosa, onde hoje está fincado o Paraguai, no final do século XVIII, na América do Sul. Ali, os colonizadores escravizavam negros e índios, nas guerras pelas independências contra a Espanha. Baseado no romance homônimo de Antonio di Benedetto, publicado em 1956, sobre um funcionário da Coroa Espanhola com a função de assessor jurídico, que aguardava ansiosamente por uma carta do rei para sua transferência daquele lugar onde está (Assunção) para um outro melhor. Mostrava as mentiras da colonização e revelava as trambicagens para se obter resultados satisfatórios.

Para alguns setores da crítica, Os Colonos se aproxima de Assassinos da Lua das Flores (2023), o western épico do veterano cineasta Martin Scorsese, adaptado do best-seller homônimo do escritor David Grann, também baseado em uma história real. Apontava para a verdadeira faceta ambiciosa e preconceituosa sentida e nutrida pelos nativos, além da busca incessante do protagonista por dinheiro e o envolvimento direto com uma engrenagem obscura. Mostrava os planos diabólicos para se apropriar da riqueza das terras indígenas como uma grande riqueza na região norte-americana de Oklahoma, em 1920. Manipulava o sobrinho para se casar com a herdeira de terras ricas em petróleo que despertam interesse e cobiça dos aventureiros. Já o realizador da obra chilena, enfatiza as imagens que são mais reveladoras e eloquentes de que os próprios diálogos, deixando o lado perceptivo falar mais alto como forma de expressão. Não é daqueles filmes que primam pela descrição bem comum em ficções históricas com o viés da epopeia de heroísmos marcantes que entram para o rol dos afortunados. O rigor da abordagem pode variar quando se trata de colonização com vítimas e algozes para uma estreita relação das forças da natureza interagir com as dos seres humanos nativos contrapondo com aqueles pseudosdesbravadores sem pudores.

O longa cumpre com interessante importância seu papel sobre o processo da ocupação em novos territórios pela América do Sul com o objetivo da exploração de terras e seus recursos naturais. A colonização em foco retrata as abjetas sujeiras empurradas para o limbo, que pouco foram aprofundadas com rigor histórico imparcial. Esta realização mostra a abertura dos caminhos até o oceano Atlântico, atravessando uma terra já ocupada há milhares de anos antes da chegada dos europeus pela tribo indígena conhecida como Os Onas, nômades que faziam sua caça em terra, em vez de serem marinheiros. Em produções menores faltaram questionamentos de cobranças éticas de situações escabrosas de nossos antepassados. Méritos para o neófito diretor que tira o véu da impunidade para um bom debate a ser discutido, porque aponta o desastre do avanço de homens brancos de maneira fria e calculista sobre os povos originários, com o uso da brutalidade ao dizimar uma comunidade, e ainda praticar covardes estupros, onde a luta de egos dos personagens afloram nos confrontos entre o trio para apontar o poder e a autoridade na missão e no território. Neste ínterim surge o Coronel Martin (Sam Spruell), um superior britânico irá revelar a verdadeira identidade de McLennan, que sentirá na pele o mesmo que fez com suas vítimas.

O desfecho inusitado mostra uma reviravolta do roteiro, quando o funcionário do governo,Vicuña (Marcelo Alonso), vai conversar timidamente com o dono das terras sobre suas possíveis atrocidades com prática de genocídio e a repercussão negativa na capital chilena. Tudo não passa de uma falsa encenação que resultará num grande arquivo de frágeis memórias históricas para pesquisa dos colonizados e suas origens pelos fantasmas do passado que povoam aqueles lugares. Contextualiza e coloca para reflexão as relações de poder em conluio com os interesses particulares com pouca ética e ausência de humanismo. Retrata com contundência os abusos oriundos da violência em relação aos aborígenes diante da tirania opressora denunciada em relação à cultura dos povos subjugados e humilhados dentro de seu território. Atinge um resultado magnífico ao mostrar a importância do cinema para desnudar, perturbar e retratar os crimes da humanidade e o extermínio de um povo indefeso. Eis um novo olhar para aqueles faroestes estereotipados, preconceituosos e reducionistas, por serem avessos aos índios colonizados e dizimados pelos governos. A desconstrução se faz necessária para o promissor cineasta Gálvez Haberle, que pontua uma crítica ao materialismo do homem branco ganancioso, nefando, e sem limites pelo descontrole abissal de seus interesses, que desvendam segredos e mostram as verdades mantidas ocultas.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Descanse em Paz

 

Sem Saída

O cinema argentino tem uma característica muito peculiar nas suas abordagens sutis e sensíveis nos temas discutidos, embora muitas vezes o cenário fique em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e a sua eficácia numa temática aparentemente simples, mas sempre de uma boa reflexão como meta a ser atingida. Diretores como Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cachorro (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka (2002); Mariano Cohn e Gastón Duprat em O Homem ao Lado (2009), e outros tantos que se podem dizer como realizadores comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida. Muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares e sociais. Recentemente a dupla María Alché e Benjamín Naishtat nos brindou com a magnífica comédia dramática Puan (2023), em uma temática de boa reflexão da privacidade e das relações filosóficas com a sociedade, que fez uma obra interessante, deixando o enredo correr para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus autores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e algumas amizades.

O cineasta Sebastián Borensztein tem em sua filmografia duas realizações sem bons retrospectos: La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010). Atingiu grande repercussão e amadurecimento, com uma direção de elegância e sutilezas, a partir da bela comédia de costumes Um Conto Chinês (2011), que teve projeção internacional e o tornou conhecido, levando mais de um milhão de espectadores somente em seu país. Depois vieram Kóblic (2016), sobre um integrante da força aérea que havia participado dos chamados voos da morte, quando opositores da ditadura eram drogados e jogados ao mar, e A Odisseia dos Tontos (2019), postulante da Argentina indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2020, todos os três protagonizados pelo astro Ricardo Darín. Agora vem do país vizinho o drama Descanse em Paz, em cartaz com exclusividade na plataforma da Netflix, último filme do diretor que também assina o roteiro em parceria com Marcos Osório Vidal, numa adaptação de um romance com o mesmo título escrito por Martín Baintrub, entrelaçando elementos de eventos históricos e incidentes da história argentina.

A trama retrata Sergio (Joaquín Furriel), um homem voltado para a família, mas com dívidas imensas, além de alguns problemas de saúde, que se aproveita de uma circunstância improvável para desaparecer sob uma identidade falsa e fugir para o Paraguai, com a intenção de salvar seus parentes próximos dessa ruína. O diretor reconstitui habilmente o atentado antissemita à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 18 de julho de 1994, que ceifou 85 vítimas fatais, e deixou centenas de feridos, inclusive pessoas que estavam na rua aleatoriamente. Só foi superado pelo de 7 de outubro passado em Israel, numa ação semelhante pela brutalidade. Após muitos anos longe de seu país, uma descoberta casual na rede social vem à tona, fazendo com que a tentação e a curiosidade de saber como estão sua esposa, Estela (Griselda Siciliani) e seus dois filhos, agora já adultos, que ele deixou para trás. Foram reivindicados os benefícios de seguro de vida para quitar a inadimplência financeira pessoal do protagonista, que devia uma fortuna para um agiota poderoso, Hugo (Gabriel Goity) e alguns amigos. Este é o ponto de partida decorrente da crise enfrentada pela economia nas últimas décadas. O presente que o pai quer dar à filha aniversariante em meio à pobreza exposta nas ruas são reveladores de um momento patético e sem saída, como uma metáfora da nação mergulhada numa infração de mais de três dígitos, além do déficit impagável ao FMI.

O acontecimento é um elemento exterior que irá dar luzes ao personagem central como uma oportunidade de criar uma nova personalidade com uma identidade falsa para tentar salvar o microcosmo familiar em perigo pelas consequências de seu passivo devedor insolúvel que enfrenta. No exterior, tem apenas uma cadela como amizade fiel, o desenho na parede do filho, e uma nova companheira de ocasião, Ilu (Lali González), como estímulos de vida para buscar a redenção. A realização traz uma boa reflexão sobre o papel do dinheiro em nossa sociedade, como as mudanças que irão advir no epílogo com tintas trágicas, como se evidencia na cena final, além do amor incondicional e aqueles que tentam ajudar na cura da solidão diante da racionalidade fragilizada e exposta à humilhação. O paradoxo desarmônico da comunicação interrompida está em conflito nas imagens captadas na internet, em que os valores dados às vidas e às amizades são exaltados como artificialidades, deixando em situação frágil a ética e a solidariedade, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexo deste hospício chamado mundo.

Borensztein aponta a magia das relações humanas estilhaçadas que prevalece e dita o filme pela sutileza e os rumos que são destinados aos personagens. Descarta as muitas obviedades e tempera o gelo do relacionamento do improvável casal aparentemente feliz, que o surpreende, tornando ácida as críticas fundamentadas, numa prazerosa meditação sobre os desiguais financeiramente e os esquivos seres que chegam aos seus destinos e encontram seus novos vínculos fraternos. O protagonista representa não apenas sua transformação de empresário a empregado. A questão pretérita não foi bem resolvida pelo suposto gesto de dignidade entrelaçada com uma coragem, talvez discutível, embora fosse a maneira única, quem sabe, de um anti-herói para salvar uma tragédia ainda maior. Não é uma solução fácil a ser resolvida diante do beco sem saída. A cena da cerimônia da festa invadida por um fantasma do passado é comovedora e ressalta o impasse da situação buscada como resgate, embora o ritual festivo não fosse suficiente para colocar um fim na crise. Os novos horizontes com os rumos de uma paz atingida por tiros como nos antigos duelos soçobrarão como sequelas. Ficam as reflexões para os espectadores tirarem suas deduções que confrontam as complexidades morais e as repercussões das situações criadas pelo protagonista em suas emoções para resolver o cotidiano em circunstâncias desesperadoras. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com méritos este instigante filme sobre a injustiça pela justiça da redenção através da fantasiosa missão pela recuperação da dignidade.