quinta-feira, 7 de março de 2024

Eu, Capitão

 

A Odisseia

O respeitado cineasta italiano Matteo Garrone tem em sua cinebiografia dois filmes extraordinários. Consagrou-se internacionalmente com o inesquecível Gomorra (2008), vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes. Baseado em reportagens que resultaram na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de uma cidade e espalhar o pânico pelo temor. Pungente, destruidor e acachapante foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador, pela sua audácia e uma garra ímpar ao expor com realismo cru as mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente. Já Dogman (2018) obteve o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes para Marcello Fonte, ao ser o protagonista em uma atuação antológica. Ele é o filme. Uma realização magistral de um enredo aparentemente simples, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa, sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos, ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma periferia.

Depois de assinar uma obra menor como Pinóquio (2022), retorna em grande estilo com Eu, Capitão, sua última realização que mostra estar ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama em ritmo de epopeia, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Massimo Gaudioso. Indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, já ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de melhor direção e o Prêmio Marcello Mastroianni para melhor ator jovem a Seydou Sarr, decorrente de sua exuberante interpretação na pele do protagonista. O diretor recupera sua credibilidade ao abordar uma temática bem atual como a crise de refugiados da África para o exterior pelo olhar invertido, no qual há uma brutalidade bem objetiva com ingredientes de um realismo fantástico. A narrativa dramática retrata a jornada dos dois adolescentes primos Seydou (Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), ambos com 16 anos, que anseiam por um futuro melhor. Os dois decidem deixar Dakar, no Senegal, e partir rumo à Europa mítica em uma aventura com tintas épicas. Enfrentarão uma série de desafios para testar a própria dignidade humana numa arriscada travessia do Mar Mediterrâneo a bordo de um barco precário superlotado, depois de ter enfrentado a hostilidade do deserto e a crueldade dos centros de detenção e sequestros de grupos terroristas na Líbia.

No drama Dogman, a prisão e a condenação levam para a cadeia o protagonista e mostram ingredientes que fazem dele um homem transformado num verdadeiro animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do tempo em que ficou enclausurado para se vingar. Já em Eu, Capitão, o personagem central ao sair daquela masmorra repleta de torturas e ameaças à vida, ainda tem forças para se submeter a um processo de trabalho escravo para se libertar e encontrar o parceiro que havia sumido. Quer dar continuidade para sua saga de percalços num caminho tortuoso e cruel até conseguir encontrar a realidade de seus sonhos e fantasias para um futuro edificante. São as fragilidades das amarguras e peripécias da odisseia confrontadas com a esperança de uma solução pragmática em uma sociedade doente em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos presos sendo torturados no cárcere clandestino, bem como dos personagens dentro do atulhado barco quase à deriva em busca da liberdade e de um horizonte tênue, mas auspicioso, no porto da Sicília.

Eu, Capitão tem um contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de medo da miséria recorrente e do terror psicológico pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os dois jovens e o espectador se chocam com as circunstâncias, embora surpreendidos no epílogo com elementos de fábula moderna adulta para resgatar a dignidade ultrajada pela humilhação dos imigrantes. Os efeitos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada no destino almejado diante da destreza do herói negro com seu troféu emblemático, ao melhor estilo das grandes epopeias pela busca de uma civilização para trazer empregos e vida digna, pela ótica dos próprios africanos. Uma realização com amplitude maior na abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade selvagem pelas dificuldades, a corrupção, a violência e a solidão. Uma viagem marcada pela frase de Seydou para o primo: “Começamos a jornada juntos. Vamos terminá-la juntos”.

Cabe ressaltar as imagens fascinantes da paisagem desértica que os personagens enfrentam durante a maior parte da trama, pelas lentes do competente fotógrafo Paolo Carnera, em consonância com a bela trilha sonora. O filme é muito bem construído pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado, embora pontue o heroísmo irônico no desfecho pela transformação que traz reflexos pelas mudanças comportamentais de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados. O carismático protagonista não demonstra fragilidades, mesmo sendo alegoricamente um representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Não é um simples relato sobre a jornada de dois garotos senegaleses que decidem imigrar em busca de uma vida melhor. É uma história com elementos humanos fortes na sua essência, que revela diversos aspectos sobre todos os seres humanos que decidem sair escondidos da pobreza do ambiente familiar pela coragem e resiliência diante do caos para seguir em frente. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana da miséria até as irracionalidades bestiais de seus detratores ocultos neste épico espetacular para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel arrebatador pela sobrevivência, que se insere na listagem dos melhores de 2024.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Dias Perfeitos

 

Cotidiano Enfadonho

Desde a morte do genial Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982), um dos maiores nomes da cinematografia da Alemanha, existem alternativas para tentar não deixar cair em decadência o cinema alemão. A esperança se renovou em muito a partir dos anos 2000 com o diretor e roteirista Christian Petzold, considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo de seu país, o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim, autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), passou por Phoenix (2014) e finalizou com Em Trânsito (2018); bem como surgiu a promissora Ângela Schnalec, realizadora de Marselha (2013) e Eu Estava em Casa, Mas (2021). Já o cineasta Wim Wenders tem dois momentos distintos em sua carreira. A primeira é voltada para dramas fortes e profundos no qual brilhou com a obra-prima Paris, Texas (1984), o inesquecível Asas do Desejo (1987) e o magnífico longa de ficção O Céu de Lisboa (1994). Fez documentários como o contagiante Buena Vista Social Club (1999) e a mini obra-prima Pina-3D (2011), voltado para o sensorial ao mostrar a leveza da alma e do espírito na arte clássica da dança.

Depois veio o segundo momento de Wenders, que apresenta um considerável declínio pela falta de inspiração e a contundência nas suas obras, com realizações menores a começar por Até o Fim do Mundo (1990), os constrangedores Medo e Obsessão (2004) e Estrela Solitária (2005), além dos descartáveis O Sal da Terra (2014), Tudo Vai Ficar Bem (2015) e Submersão (2017). O retorno parecia indicar que tivesse se recuperado com mais energia da fonte que o alimentava, para uma suposta redenção triunfal com Dias Perfeitos que, inexplicavelmente, representa o Japão no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo o excelente Koji Yakusho vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes em 2023. Ledo engano. Embora tenha sido um realizador mais voltado para as feridas sociais e as angústias derrotistas de seus personagens, em dramas memoráveis, parece que perdeu definitivamente a inquietação e o foco. O tema da solidão sempre merece muito estímulo, o que faltou flagrantemente em Wenders e seu parceiroTakayuki Takuma, ao escreverem um roteiro burocrático e repetitivo com cenas recorrentes, tendo uma montagem desleixada.

A trama acompanha a história de Hirayama (Yakusho- tenta carregar o filme pelo seu talento desperdiçado), um homem de meia-idade muito reflexivo que vive sua vida de forma modesta como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Sua rotina começa pela manhã ao abrir a janela e olhar o sol, fazer a barba, aparar o bigode, tomar café, apanhar as ferramentas e colocar no carro ou na bicicleta e se dirigir para o local de trabalho e realizar suas tarefas profissionais do dia a dia. Mora num modesto sobradinho em um arrabalde pobre, sem luxo, com uma cozinha-banheiro onde escova os dentes de manhã, tem uma escada estreita e uma luz neon rosa que ilumina o quarto no andar superior. Adora ler na salinha pequena onde guarda seus livros, que pode ser claustrofóbica ou aconchegante, depende do ponto de vista e da observação do espectador sobre a simplicidade no local exíguo. Seguidamente passa numa livraria e compra um novo exemplar. Tem um amor platônico pela dona de um bar nas redondezas, e por aí vai.

Uma rotina com algum encanto ao transitar pelos parques e praças para tirar fotografias, e frequentador contumaz de lanchonetes e lojas de discos. Estas cenas se repetem à exaustão, numa compulsão do diretor pela reiteração até cansar o espectador. A monotonia é a mola propulsora do drama, às vezes se salva, graças ao diretor de fotografia Franz Lustig, que busca por ângulos de câmera em novos horizontes para um olhar mais expressivo do dia a dia, através de imagens que retratam momentos silenciosos, mesmo com distância da emoção na abordagem da tristeza e da alegria do protagonista metódico. A aparição de uma sobrinha parece trazer um alento, mas logo tudo se dilui e se esfarela pelo surgimento da irmã do personagem central recheada de preconceitos, ainda que artificialmente, foi uma das raras cenas que trouxe equilíbrio e alguma lucidez do diretor. O passado sombrio ficou ali e não evoluiu, exceto os encontros inesperados com alguma sensibilidade.

Velvet Underground, Otis Redding e Lou Reed com o título da música Perfect Days, disco produzido por David Bowie e lançado em 1972, compõem a boa trilha sonora, com canções aprazíveis e sugestivas da internacionalização de Tóquio. Quase que uma ode sacral do cotidiano pelo repetitivo esforço de Hirayama em se manter vivo e aprender com situações novas diariamente, como do seu empregado apaixonado por quem lhe despreza; da mãe que perde a criança na praça; do surgimento do ex-marido da dona do bar, que pouco acrescenta e logo descamba para o melodrama apelativo junto às águas do rio. O longa transita por temas como a solidão, a rotina, e a fuga para o sentido na vida moderna. Mas quase nada funciona ou é abordado sem profundidade. Na oscilação entre ajustes e desajustes, constâncias e quebras, a narrativa se debruça na observação rasa da repetição, em que conflitos vêm e vão pela vida. Eis um paradoxo da previsibilidade da indignidade da rotina de revezes do protagonista em seu silêncio constante, mas que aprecia a paisagem e sua tranquilidade ao fazer seus passeios contemplativos para encontrar conexão com a vida e, quem sabe, acreditar em alguma coisa mais significativa, mesmo que resignado com a rotina. Caso o diretor não se entregasse à preguiça criativa e sonolenta, e o filme fosse melhor estruturado, poderia sair algo melhor nesta redundância da repetição.