sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Singularidades...)

















Singularidades uma Rapariga Loura

Manoel de Oliveira nem parece ter 101 anos, pois está em forma e adaptou desta vez um conto de Eça de Queiroz, com a jovialidade do cineasta mais velho em atividade na história do cinema. Desta vez debruça-se sobre um conto do universo clássico da literatura de seu conterrâneo português. Já fez trabalhos melhores, isso é verdade, como Amor de Perdição (1978), Vou para Casa (2001) e o magistral Um Filme Falado (2003).

Sua última obra Singularidades de Uma Rapariga Loura mostra a paixão de Macário (Ricardo Trêpa) pela deslumbrante vizinha da casa do outro lado da rua em Lisboa (Catarina Wallenstein), numa alusão discreta e fascinante ao mestre Alfred Hitchcock com o filme Janela Indiscreta (1954) e suas louras fatais. Espia diariamente aquela moça encantadora e misteriosa que balança seu leque chinês com dragões em ambos os lados, numa metáfora sobre qual sua verdadeira face e a ilusão de ótica do pretendente. Seu tio Francisco (Diogo Dória) opõe-se inexplicavelmente ao relacionamento e ao pedido de casamento, acaba por expulsá-lo de casa e afasta-o do trabalho. Este busca emprego em outro armazém e vai fazer fortuna em Cabo Verde, conseguindo finalmente a permissão do velho tio para se casar, porém o inesperado acontece e o infortúnio da desilusão com a desgraça se abate sobre sua cabeça de forma categórica e triste.

A história deste grande amor é contada pelo próprio Macário para uma senhora aguçada pelo desenlace, numa viagem de trem para Algarves onde o cobrador confere as passagens minuciosa e educadamente, com o gingado pelos trilhos da locomotiva. Os fatos começam a se delinear com a visita ao sarau literário, num mundo requintado e diferente de Macário, para ouvir o poeta Luiz Miguel Cintra recitar poemas, onde há citações a Fernando Pessoa.

As ironias do destino e o desdobramento para as revelações que serão conhecidas somente na última cena destes 63 minutos bem elaborados e o refinamento da síntese cinematográfica proposta pelo velho mestre Manoel Oliveira. O voyeurismo está presente, assim como em Hitchcock tão bem colocava. A descrição da poética Lisboa que serve como cenário é feita com toda a sutileza e elegância. Os quadros nas suntuosas paredes com os belos tapetes vermelhos que guarnecem a linda residência do tabelião com candelabros e lustres que pendem do teto são majestosos, ao mesmo tempo conflitantes com a paixão pela rapariga enigmática e com traços de desvio comportamental não visíveis.

O cineasta explora com boa qualidade as relações entre um homem e uma mulher, mesmo que o sofrimento se faça presente e haja uma fracassada união em ebulição. Nas joias que se encontram na joalheria está a solução e o contraste daqueles dois seres com propósitos diferentes. Um romântico e apaixonado querendo casar e preservar a espécie, o outro sedento pela mesquinharia e torpeza, apenas deixando marcas indeléveis de desonestidade e falta de caráter, já prenunciados no amigo de Macário que o envolveu num empréstimo bancário, levando o rapaz como fiador.

Embora seja um filme menor, ainda se vê todo dinamismo de um cinema com toda sua eloquência. O poder de síntese com cenários meticulosamente apresentados ao seu fiel público corroboram para a expectativa sempre de uma película elegante. Ser jovem e coerente com o que faz, demonstrando lucidez numa pessoa centenária também comovem e remetem para a beleza de cenas sempre dignas de uma realidade, além de tudo muito humana e sensível.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Seguindo em Frente)
















Seguindo em Frente

As relações familiares são confusas e têm suas peculiaridades intrínsecas que norteiam as vidas e suas passagens, com seus segredos e ressentimentos. Eis o mote deste magnífico microcosmo apresentado no Seguindo em Frente, do japonês Hirokazu Kore-eda, que tem na sua filmografia os instigantes Maborosi (1995), Depois da Vida (1999), Ninguém Pode Saber (2004) e Hana (2006).

O drama familiar está presente com suas singularidades, revelações e preferências da família que atingem em cheio os espectadores. De uma reunião para celebrar a morte de Junpei, filho mais velho, acontecida há 15 anos, muitas revelações vêm à tona e arrebatam sem pieguices o âmago da alma daqueles membros doloridos pela perda misturado ao ciúme entre irmãos, filho e pais, esposa e marido, de forma avassaladora como um míssil no coração.

Os valores culturais são cultivados quase sem questionamentos, como na última cena, onde é colocada água na sepultura dos pais que recém os deixaram, prática esta ensinada na comovente cena da velha mãe que num dia escaldante de verão, põe minuciosamente o líquido para aliviar o calor do filho nunca esquecido, mesmo que já não mais esteja entre os vivos, mas a memória e a sua presença são uma constante e a preservação faz parte do ritual, assim como visto no excelente A Partida (2008), de Yojiro Takita, sobre a celebração da morte com suas nuanças.

O segredo das borboletas amarelas é intrigante e elas perseguem aquelas desorientadas pessoas por ondem andam, como no cemitério, no interior da residência ou pela bela alameda constituída de uma enorme escadaria sinuosa e de árvores frondosas fazendo a sombra, com o mar ao longe servindo de painel para a beleza plástica daquele aconchegante lugarejo, salpicado por ruelas minúsculas e seus pássaros cantando radiantes à espera do tempo passar.

Se o filho Ryota sente o peso da responsabilidade do velho pai, um médico aposentado, à procura do sucessor na medicina, até mesmo naquele menino que ele chama de não neto legítimo, por ser filho da viúva e vista à distância como nora, pois a irmã é uma fútil e destrambelhada, que ignora a convivência entre parentes, dedicando-se apenas aos seus afazeres profissionais e seu esposo.

Em outro momento marcante, há a cena da volta, já com uma filha que seria de verdade, como alegado outrora, para aquele lugar de lembranças, lamenta-se por não ter podido realizar os sonhos acalentado no seio familiar: como ir ao futebol com seu pai, ainda que de relações estremecidas e de não ter dado uma singela carona de carro para sua mãe, uma pessoa surpreendente pelas comidas que se dedicava e fazia com extrema sensibilidade, contraditoriamente com as revelações de ódio e vingança contra o jovem gordo e pivô da morte de seu amado e predileto filho, ao salvá-lo de um afogamento imininente, chamado de imprestável pelo médico aposentado, deixam estupefato e ainda mais pessimista Ryota para um convívio salutar, além do incômodo que parece ser sua existência na célula daquela família desagregada. Impossível conter uma lágrima docemente rolando pelo rosto, diante da ternura da imagens.

O diretor demonstra as fortes ligações com o velho mestre japonês Yasujiro Ozu, morto em 1963, um preocupado cineasta com as intrigantes relações interpessoais e os dramas familiares, bem com a tradição cultivada, embora a modernidade invadindo os costumes no Japão seja uma realidade, entrando em choque cultural, diante dos novos tempos que se avizinham e estão cada vez mais presentes, tais como Jupey, o filho falecido tragicamente que nunca aparece. Permanece apenas as lembranças que se vão e a renovação familiar como bem estimula a última cena deste sensível e imperdível filme de Kore-eda, de beleza lírica constante constrastando com os ressentimentos que se expõem como vísceras abertas.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo (Soul Kitchen)

















Soul Kitchen

Novamente o brilho do cineasta alemão de ascendência turca Fatih Akin, se faz presente nesta elogiável comédia dramática Soul Kitchen, que obteve o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza deste ano. O diretor tem no seu currículo filmes rigorosamente dramáticos como sua obra-prima Do Outro Lado (2007), que obteve o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes daquele ano. Causou furor no cenário brasileiro inicialmente com Contra a Parede (2004) e em seguida com o deslumbrante documentário musical Atravessando a Ponte- O Som de Istambul (2005), demonstrando toda sua sensibilidade e vigor estético inovador nestas três obras anteriores magistrais.

Desta vez o documentário e o drama cedem seus lugares para a comédia escrachada com pitadas de drama. Começa com uma cozinha saborosa, com pratos bem feitos e deliciosos quitutes colocados numa mesa bem posta, lembrando A Festa de Babette (1987) e O jantar (1998). Mas Akin tem luz própria e não se deixa levar pelas semelhanças de filmes estritamente de forno, fogão e mesa.

Sua história com o cinema é mais elevada e os dramas pessoais abrangem o contexto e dominam as diversas situações; como as do cozinheiro com suas peripécias do amor quase perdido da namorada que está indo para Xangai, ou da dor física como os problemas com sua insólita hérnia de disco a perturbar seus movimentos. Ainda que o riso provocado pelas situações cômicas se alternem, fica evidente a preocupação com o ser humano. O irmão em liberdade condicional, viciado em jogo, ao assumir o restaurante leva-o para um imbróglio. A troca do chefe de cozinha e a fiscalização da saúde e da fazenda levam para uma verdadeira maratona confusa quase sem saída.

Mas o amor está como uma solução para os irmãos, como uma cura protagonizada com eficácia; ou para aquele viciado com problemas com a justiça, mesmo mentindo para a mãe não se acha desleal; ou para o dono do estabelecimento que parte para uma solução drástica para sua doença, conduzido pelas mãos de uma fisioterapeuta que aos poucos vai conquistando o coração daquele atrapalhado comerciante de comidas. Inova com grupos musicais realizando shows e muda a mentalidade de seu estabelecimento outrora decadente, abriga agora um público mais eclético e descolado, pois os tempos de mudança sopram rapidamente para o futuro.

O filme mostra as decisões equivocadas e inconsequentes, como uma boa reflexão sobre a persistência e a renovação do restaurante para a busca de um idealização com o se significado próprio como a cozinha das almas.

As mudanças sugeridas são o elo entre o pessimismo e uma realidade que às vezes está bem próxima, mas teimosamente alija ou afasta como forma de um preconceito ou conservadorismo cultuado. A insistência e a fibra com uma mentalidade criativa servem de estímulo deste belo filme, com uma Istambul com seus barcos e rios maravilhosos desfilando na tela.

Mostra de Cinema São Paulo (A Fita Branca)











A Fita Branca

Já em Caché (2005), o cineasta austríaco por adoção e alemão por nascimento Michael Haneke aborda as questões intrínsecas ao mistério de uma fita de vídeo enviada para a casa de uma casal francês que está sendo vigiada. Porém em A Professora de Piano (2001), seu talento fica mais evidente na personagem de uma professora que instiga pela perversidade latente naquela misteriosa educadora de música com gostos estranhos. Agora em A Fita Branca, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2009, sua lucidez com a parábola sobre o nazismo, que em breve se alastrará pelo mundo, fica estigmatizado sutilmente.

O longa-metragem tem como cenário uma aldeia de protestantes na Alemanha, em 1913, antes da disseminação do nazismo por Hitler, às vésperas da I Guerra Mundial, com uma semelhança enorme pela estética e o formalismo das cenas de Luz Silenciosa (2007), de Carlos Reygadas. Fatos misteriosos começam a acontecer entre os moradores, como um fio que quase degola o médico e uma mulher que morre de maneira estranha na empresa do Barão, uma espécie de Führer pela sua conduta autoritária e centralizadora e seus problemas de relacionamento com a baronesa que busca sua liberdade e a do filho que vivem naquele ambiente inóspito.

As crianças apresentadas como inocentes- os filhos do pastor usavam a fita branca para mostrarem e celebrarem a inocência que não poderia ser perdida- que de inocentes pouco tinham naquele vilarejo de hipocrisias e mentiras, numa caracterização como a do médico que se relaciona com sua filha incestuosamente, tem um filho deficiente com a parteira, alvo de chacotas e ameaças de vida. Sua mulher morta leva a uma reflexão do instinto da morte planejada ou por acaso. A filha teria alguma responsabilidade na disputa pelo pai.

Outro personagem contraditório é o pastor que se denomina de pregador religioso, embora suas atitudes de educador descambe para a violência e a humilhação em público dos filhos, atraindo a revolta e a vingança pela mutilação de um pássaro de estimação. No filho menor existe ainda a esperança de vida e beleza poética nos seus diálogos com palavras de interrogação e afeto com o pastor-pai.

É evidente que o rigorismo da religião serve como mote para o desenrolar da trama, propiciando questionamentos como o extremo ardor pela ordem com o inaceitável deslize, sendo muitas vezes respondido com bofetadas nos rostos daquelas crianças angelicais na imagem e demoníacas nas atitudes. A intolerância está presente em cada ato, não se admitindo a masturbação dos filhos, com ameaças de que estariam adquirindo uma doença fatal, mesmo que os instintos da natureza da juventude assim determinassem.

A ordem social não poderia ser minimamente ameaçada, para que uma reunião se fizesse presente e o barão, ou o Führer, conclamasse aos moradores- quase todos seus empregados-, para que os entregassem, com o intuito de serem retirados do convívio da aldeia, mantendo a punição do ritual. Enquanto isso fatos misteriosos continuam a eclodir e as vidas daquele meio hostil e nada hospitaleiro entram em ebulição, com incêndios, torturas e perseguições no trabalho são contadas didaticamente na primeira pessoa pelo professor do coral de crianças. Nem a música é respeitada, pois as aulas são interrompidas pelas autoridades que submetem os menores a verdadeiros interrogatórios de inquisição nazista.

A conclusão do filme embora sugira a solução, pode também esconder os verdadeiros autores intelectuais das atrocidades. Isso pouco importa, pois a bela parábola constrói e lança suas farpas para serem refletidas, por ser um relato histórico perturbador, digno de prêmios, ainda que o contexto total do longa seja menos denso do que o sugerido.

Mostra de Cinema São Paulo (Shirin)















Shirin

Às vezes a busca da reformulação ou de uma metalinguagem no cinema pode levar para a consagração ou para uma derrocada espetacular. Foi o que aconteceu com o indiscutível diretor iraniano Abbas Kiarostami com o longa Shirin na 33a. Mostra de São Paulo. Autor da obra-prima Gosto de Cereja (1997), obteve a Palma de Ouro em Cannes naquele ano. Tem na sua biografia outras obras magníficas que o consagraram no cenário internacional, como Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Close Up (1990), Através das Oliveiras (1994), O vento nos Levará (1999) e em 2000 é indicado ao Palma de Ouro com o filme Dez.

Desta vez não estava inspirado e seu talento invulgar pediu férias para descansar e relaxar possivelmente em Paris. Ver Shirin parece ser uma tortura para os espectadores que assistem os intermináveis 91 minutos de rostos de mulheres chorando copiosamente pelo desenrolar de um melodrama em que uma princesa e um rei são os protagonistas.

Nem a presença e Juliette Binoche com lágrimas rolando pelo rosto conseguiu salvar Kiarostami do fiasco retumbante que foi esta caricatura de filme, em que fala de uma paixão de uma princesa armênia por um príncipe, relatada pela poetisa iraniana Nezami no século XII, contada para uma plateia majoritariamente feminina, de rostos lindos com belos lenços envoltos na cabeça, ficando para o espectador assistir pelos olhos destas mulheres as sequências da trama.

O som do trote dos cavalos, as espadas se tocando, vozes desconexas e rios com as águas subindo e descendo, com as chuvas tamborilando no palco, nada mais é do que uma volta ao passado; onde as velhas novelas de rádio, com os contrarregras sendo as estrelas com seus sons entrando e saindo nas cenas e os ouvintes em casa curtindo com todo o ardor o próximo capítulo. Mas isso foi lá na década de 60. Evidentemente que o diretor não se reportou e sequer pensou nesta ideia, mas que é um atraso para os dias de hoje uma referência destas é inegável. Ainda mais que estamos em plena era da internet.

A película ficaria muito bem num curta de no máximo 15 minutos, competindo na categoria. Porém é imperdoável massacrar os abnegados cinéfilos apreciadores de um gênero que o consagrou como o humanismo, a denúncia, a aproximação de um cinema de pessoas comuns com uma dramaturgia com a marca registrada da escola iraniana de diretores da primeira linha do cinema mundial.

O artista deve buscar alternativas, mas desde que o seu contexto de metalinguagem não frustre e decepcione, como ocorreu neste caso, em todos os sentidos, deixando passar uma oportunidade que se frustra, inegavelmente por outro lado fica o alerta de uma inovação menor e sem sentido, beirando ao risível que macula mesmo que levemente uma imagem construída com dignidade de histórias maravilhosas de uma beleza poética, social e política como o cultuado Gosto de Cereja.

domingo, 1 de novembro de 2009

Mostra de Cinema São Paulo- (Ninguém Sabe...)


















Ninguém Sabe dos Gatos Persas

O cinema iraniano traz mais um bom filme para a 33ª. Mostra de São Paulo, no irrequieto Ninguém Sabe dos Gatos Persas, tendo na direção Bahman Ghobadi, que já realizara outras grandes obras, tais como Tempos de Embebedar Cavalos (20o0), Canções da Terra de Minha Mãe (2002) e Tartarugas Podem Voar (2004), todas com premiação nas mostras anteriores. A simplicidade é uma tônica nos produtos do Irã, porém dificilmente não traz reflexões políticas e sociais satisfatórias.

Bahman é um cineasta de muita sensibilidade, assim como demonstrara em seus filmes antecessores. Neste longa aborda com muita propriedade a trajetória de um casal de jovens músicos que saem da prisão, decididos a formarem uma banda de indie rock, mas encontram diversos obstáculos, como a polícia repressora de um regime totalitário. São reprimidos nas suas incursões pelos subúrbios, encontram sérios problemas para realizarem seus ensaios, achando alguma tranquilidade num estábulo, onde as assistentes são as vacas leiteiras que atônitas parecem escutar a música vinda daquele grupo de ideais e vontades contrárias à ordem e aos bons costumes.

As andanças pelo submundo do Teerã, procurando parceiros e instrumentos, refletem o caos das ruas da periferia, assim como nas baladas os jovens se divertem bebendo ou se drogando, reflexo de um sociedade derrotista e sem perspectiva para uma geração de desafortunados. As autoridades proíbem músicas ao vivo e ensaios, mas são corruptas como na cena do policial que alivia uma multa pesada, ou arranca um cão de dentro do carro, na espera de propina.

A busca da liberdade fora do País para tocar na Europa é tentada, mas os óbices vão surgindo e os caminhos cada vez mais encurtando, até mesmo com a prisão daqueles atravessadores que recebem dinheiro para conseguir passaportes clandestinos. O casal fica sem dinheiro e o jeito é tocar nos subterrâneos da capital iraniana, enfrentando a fúria dos vizinhos delatores e da polícia repressora.

A reflexão dos caminhos daquela juventude se cruza com um músico voltado para atividade voluntária de um grupo de crianças carentes, numa cena bonita de esperança que resiste no coração daquele ativista convicto, embora haja o contraste da morte por suicídio, quando há na metáfora do jovem literalmente sem saída para um futuro imediato, cansado da opressão e não vislumbrando um destino como previa, numa situação desoladora pela revolta.

Um filme inquietante numa estética simples e eficiente, que alavanca para uma reflexão de um Irã repleto de contrastes, onde a religião é usada como escudo de um totalitarismo de xás, mulás e homens voltados para seus instintos de domínio, sem uma democracia que conceda a juventude um mínimo de direito ou a possibilidade de partir para a busca de outros horizontes pelo mundo.

Mostra de Cinema São Paulo (Vencer)



Vencer

Marco Bellocchio reaparece em grande forma com este poderoso longa-metragem Vencer na 33ª. Mostra de São Paulo. Realizador de Em Nome do Pai (1971) e Bom Dia, Noite (2003), conta de maneira simples e instigante o lado sombrio da vida de Benito Mussolini, seu passado de rejeição ao filho e abandono total à sua primeira mulher que contribuiu de forma decisiva para sua ascensão.

O longa se debruça na história de Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno, em desempenho elogiável), primeira mulher de Mussolini (Filippo Timi, num grande duplo papel) que vende sua casa e todos os seus bens, alcançando para o Duce montar um jornal, dando-lhe autoconfiança e um filho, que sofre todas as amarguras, após o abandono do velho fascista que se nega a assumir a paternidade.

A vida de Mussolini é dissecada, desde o tempo e que começou como líder sindical socialista, ateu, fundando o Partido Fascista na Itália. Incita as massas contra a igreja e a monarquia. Alista-se no Exército para ir lutar na I Guerra Mundial, mas desaparece misteriosamente, ressurgindo logo após casado com outra mulher, construindo uma nova família e negando qualquer outro vínculo com o passado, ignorando a primeira mulher e o filho bastardo. Manda queimar toda documentação nos cartórios e igrejas que possa prejudicar sua imagem. Vira as costas também para as bases sindicais que lhe deram suporte, conduzindo-o ao topo do governo e a liderança mundial.

Ida tenta buscar seus direitos em vão. O fascismo está por toda parte, até dentro da igreja junto às madres, entre os médicos psiquiatras, parentes e vizinhos. Sua luta é inglória e o seu destino é um longo enclausuramento num hospício por 11 anos, pois é tachada de louca com laudos forjados, com o objetivo de calar sua voz que poderia manchar a reputação de líder de uma nação em delírio com um dos mais abjetos regimes que foi o fascismo, a partir de 1919. É amarrada e torturada, por determinação superior, pois o Duce não pode ser injuriado, afastada definitivamente do filho que nunca mais poderá vê-lo, num castigo como só se aplicava na Idade Média. Dos direitos reivindicados, recebe como recompensa o isolamento e a pecha de louca.

A simbiose da política com o erotismo é abordada nas primeiras cenas com bastante maturidade entre Ida e Mussolini, porém já revela um País que se deixará envolver pelo fanatismo político e prenuncia a institucionalização fascista, onde o Duce deixa transparecer todas suas fraquezas, dúvidas e interrogações inerentes das deficiências de uma pessoa de carne e osso, bem como revela seus instintos violentos de uma personalidade doentia, onde os demônios do totalitarismo afloram neste longa italiano como poucas vezes se vê, ultimamente Sokurov (Sol- 2005), (Arca Russa-2002), (Taurus- 2001) e (Moloch-1999).

Bellocchio deixa singrar seu filme pelos mares da visão feminina, demonstrando e refletindo o usurpamento e o vilipêndio da mulher já desde aqueles tempos, ao ser descartada como um objeto pelo ditador. Ida é uma espécie de Antígona e de uma mãe lutadora pelo filho e pelo amor do marido, nesta bela caracterização do cineasta, neste drama político imperdível.