segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Um Alguém Apaixonado)















Um Alguém Apaixonado

Abbas Kiarostami demonstra com este excelente último longa Um Alguém Apaixonado, ter se escalado como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de melhor filme desta 36ª. Mostra de São Paulo, dando sinais evidentes de seu retorno às origens com uma clara referência aos filmes de sua carreira realizados no Irã. Antes havia fortes vínculos de coautoria com o espectador, o que está de volta num retorno até certo ponto às suas raízes e seu povo, embora o cenário seja Tóquio.

O próprio diretor afirmou na sessão comentada que irá filmar no seu país o próximo longa-metragem. É perceptível com bastante nitidez, se perceber o diretor derivando para um passado de filmes eloquentes na reflexão, embora partindo de situações cotidianas bem simples, quase que corriqueiras, tomando vulto no desenrolar da trama com um envolvimento e a situação complexa no epílogo sem saídas convencionais. Assim foi em Gosto de Cereja (1997), Atrás das Oliveiras (1994), O Vento nos Levará (1999), Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987) e Close Up (1990). Dá mostras de estar deixando para trás uma momento de ocidentalização como no sofrível Shirin  (2008) e no bom Copia Fiel (2010).

Kiarostami busca novamente entrar no jogo da mentira como um novelo que vai se desenrolando com o andar do filme, o que ocorrera em Cópia Fiel, para discutir-se a relação de um casal conflitado com os problemas decorrentes do desgaste pela convivência da união de duas pessoas que mais pareciam estranhas do que próximas. E havia no meio uma criança perdida e atordoada pelas circunstâncias dos pais.

A trama desenvolvida na sua produção japonesa é muito bem conduzida pela jovem Akiko (Rin Takanashi), uma estudante desinteressada que veio do interior, é ingênua e meio bobinha, faz programas por dinheiro, namora um mecânico ciumento e possessivo (Ryo Kase). A coisa começa a se complicar quando encontra por indicação de um cafetão do bar que frequenta, o idoso Takashi (Tadashi Okuno), um professor de sociologia, escritor e tradutor, que mora nos arrabaldes de Tóquio numa casa-biblioteca, vigiado por uma vizinha que nutre um amor platônico por ele.

Num certo momento, parece que estamos em Teerã, com os velhos filmes de Kiarostami, mas não. O cenário é de cores radiantes que iluminam as ruas e prédios da nevrálgica Tóquio e sua população estressada. Tudo é aparência e um jogo estranho começa a acontecer com o velhinho que ao buscar o prazer pago para aliviar sua solidão, pois é um viúvo que mora absolutamente sozinho. Não tem animal de estimação, vive ente os livros e o trabalho. Prepara um jantar com vinho e sonhos de uma noite grandiosa, mas é truncada pelo sono da jovem inexperiente. Ambos demonstram serem criaturas perdidas, ingênuos e solitários numa Tóquio grandiloquente. Uma relação de avô e neta ou uma noite de prazer de prostituição?

As mentiras começam a ser invocadas entre o professor e o namorado da garota. Uma sucessão de gafes dos protagonistas enseja uma armadilha de explosão no final. Akiko é uma personagem com dúvidas e sem um objetivo maior, embora demonstre arrependimento ao não ir ao encontro da avó que vem do interior. Os enigmas do filme seguem até a cena final, como da relação amorosa do casal, onde os dois são antagônicos e conflitados. O rapaz é o símbolo da paixão desmedida, ela quer mantê-lo, mas não sabe direito por que o ama. Habilmente o diretor coloca os três em situação constrangedora e eivada de contratempos.

Um Alguém Apaixonado se desenrola em 24 horas, mas é abrangente e revelador, como num jogo de sedução e mentiras, solidão e prazer, a prostituição para manter-se numa cidade cosmopolita como Tóquio. Temas estes bem explorados e com a o estilo vigoroso de Kiarostomani, mostrando culpas recíprocas e arrependimentos implícitos, com uma forte dose de amor sem fronteiras transgressor de limites, neste fabuloso e intrigante filme desde seu início até o desfecho em aberto, mas poderoso como reflexão sobre o jogo de mentiras que destroem a civilidade e podem levar à violência desmedida.

Debate em São Paulo

Após a exibição do filme, o diretor Abbas Kiarostami participou de um bate-papo com o público. Recebeu inicialmente o Troféu Leon Cakoff das mãos de Renata de Almeida, viúva do organizador morto ano passado. Durante a conversa, ele falou que sabe sim o que quer dos longas realizados e o que pretende e aonde quer chegar com eles, mas que tendo um produtor, tem que submeter o roteiro pronto a uma supervisão. Perguntado: por que o Japão? Respondeu: por que não o Japão? Logo complementou que neste país todas as circunstâncias convergem e que não poderia ser outro lugar mais adequado. Quanto ao idioma não vê nenhuma problema, pois ele é secundário. Arrematou que não entende português, mas gosta muito do Brasil. Finalmente asseverou que seu próximo filme será no Irã, embora um retorno difícil pelas contingências políticas.

domingo, 28 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Renoir)
















Renoir

Outra grata e gostosa surpresa na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este magnífico Renoir, um filme francês com a direção do já experiente Gilles Bourdos. Tem no seu currículo os filmes Disparus (1998), Inquiétudes (2003), e o badalado Depois de Partir (2008), sobre um advogado com um futuro brilhante, mas com sérios problemas em sua vida pessoal, pois sua ex-esposa e filha moram em outra cidade, mas mesmo quase não as procurando, nunca as esqueceu.

Este comovente drama aborda com sensibilidade o final da vida do extraordinário pintor Augusto Renoir (Michel Bouquet- de desempenho irretocável), tendo como cenário a Côte d’Azur, em 1915. Veio a falecer em 1919. O mestre das tintas vive um momento de graves problemas pessoais, atormentado pela morte de sua mulher, lancinantes dores por uma artrite reumática degenerativa e como desgraça pouca é bobagem, é informado da triste notícia que seu filho Jean- ele mesmo, o cineasta Jean Renoir- (Vincent Rottiers) fora ferido em combate na guerra e está retornando manco de uma perna.

Bourdos conduz com elegância a trama, surgindo na vida do velho pintor a linda jovem Andrée (ChristaTheret), tornando-se sua última modelo e fonte de inspiração e rejuvenescimento, decorrente daquela beleza radiante que lhe soa como um bálsamo para continuar vivendo. Mas nem tudo é felicidade, paz e amor. Logo com a volta do filho ao convívio familiar, para recuperar-se dos ferimentos, fica fascinado com a moça e sofre uma forte oposição do pai para o romance.

O drama mostra a ascensão de Jean como cineasta e a influência de primordial de Andrée como atriz e incentivadora de sua carreira e consagradora mais tarde. A modelo fez muitas concessões, brigou muito com as demais moças e criadas da casa dos Renoir. Cutucou o rapaz com vara curta, chamou-e o de filhinho de papai riquinho e questionou sua vontade de servir às forças armadas, numa guerra sem objetivos maiores.

O filme retrata especialmente o velho pintor contrariado com o que acontece na guerra, sua vontade de viver está nos quadros e nas pinturas, refletindo a beleza das mulheres com cores coloridas e do esplendor da natureza, contrariado com Jean que insiste no preto e em ser soldado. Seu principal objetivo, como ele próprio afirmava, era conseguir realizar uma obra agradável aos olhos. No entanto, o talento não começou expresso nas telas, e sim na porcelana, quando trabalhou como ajudante de um pintor e aos 17 anos, trocou os pratos pintados pela pintura em leques e tecidos, que lhe rendia maiores ganhos.

O impressionismo da técnica do pintor no longa está presente na magnífica fotografia. Renoir nunca deixou de dar importância à forma, teve um período de rebeldia diante das obras de seus amigos, no qual se voltou para uma pintura mais figurativa, evidente na longa série Banhistas. Recupera sua pincelada enérgica com motivos que lembram o mestre Jean Auguste Ingres, por sua beleza e sensualidade. A sua obra de maior impacto é Le Moulin de la Galette, em que conseguiu elaborar uma atmosfera de vivacidade e alegria à sombra refrescante de algumas árvores, aqui e ali intensamente azuis. Percebendo que traço firme e riqueza de colorido eram coisas incompatíveis, combinando que tinha aprendido sobre cor, durante seu período impressionista, com métodos tradicionais de aplicação de tinta, ricos em traços curtos que intercalavam nuanças de luz e cor. A luz solar aparecia como elemento predominante na sua pintura. O resultado foi uma série de obras-primas bem no estilo de seu mestre Ticiano, a quem admirava e citado no longa, assim como outros pintores que reverenciava como Fragonard e Boucher ele admirava.

Renoir não é somente um filme sobre o final da vida do notável pintor e seus quadros, mas sua relação amistosa e tímida com os quatro filhos, entre eles a única mulher, que busca longe do lar sua trajetória pessoal. Não é um exemplo de pai ou um marido dedicado. Suas ex-modelos queixam-se de serem descartadas como objetos depois de usadas. A doença que lhe corrói seu físico tira-lhe seu humor em muitas vezes, deixando transparecer que também é de carne e osso, tem fragilidades de qualquer mortal.

O diretor concentra sua projeção nos fracassos do ser humano, pois esta não é somente uma película de endeusamento de um mestre como uma poesia lírica. É antes de tudo um vigoroso relato crítico de uma aristocracia com seus problemas familiares, de doença degenerativa, acidentes de guerra, de profissões que se seguem por influências externas e antes de tudo, a vida das modelos pós-beleza e fama num ambiente carregado de certa forma que dão consistência para este excelente drama.

Mostra de Cinema São Paulo (Sonata Silenciosa)



Sonata Silenciosa

Outro filme sem maiores referências que está na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este sofrível Sonata Silenciosa, uma coprodução da Eslovênia com a Finlândia e Suécia. É o terceiro longa-metragem do neófito diretor eslavo Janez Burger, que tem em sua filmografia outros dois longas desconhecidos, como o inédito Idle Running (1999) e Ruins (2004).

Este filme sem diálogos é um retrato sobre um cenário de guerra e mortes com a esperança de que a vida possa ter vez e prosperar com a chegada de uma caravana errante do Circus Fantasticus, bem próximo de uma residência e seus traumas. Lá mora um homem solitário acompanhado de seus dois filhos numa casa em ruínas no meio de um campo em estado desolador por consequência dos traumas da guerra. Acaba de morrer a esposa e mãe de seus filhos acidentalmente por uma granada durante uma investida militar feroz. Vive pensando que será atacado novamente e a morte ronda esta família vitimizada pelo terror dos confrontos bélicos.

Um filme sobre os efeitos da guerra e sinais evidentes ainda das bombas explodindo. Nem o tanque de guerra com seu soldado que ousa brincar com os palhaços do circo itinerante consegue escapar de uma certeira pontaria vinda de um inimigo oculto. A explosão violenta que levanta para os ares aquele intransponível carro-tanque é o símbolo da violência exacerbada e fora de controle do homem civilizado. Mas a película tem erros primários como a previsibilidade amorosa do viúvo com uma das componentes circense, bem como a garota órfã de mãe com outro integrante do comboio itinerante. Há a cena fria do passeio pela praia do casal enamorado e o encontro com os corpos dilacerados na areia parecendo normal e servindo de brincadeira e um lirismo ingênuo. Também o excesso da apresentação circense com acrobacias, um homem engolidor de fogo, outro fazendo mágica barata, soa como desnecessária e cai na sonolenta basbaquice.

O cineasta perde o tempo e o momento certo para a ilusão de ótica na simbolizada cena solta no roteiro do velhinho recém-morto. Outro exagero de um iniciante cineasta é a tosse sufocante e tediosa do longo plano-sequência, que não seria realizado por um diretor um pouco mais experiente, pois uma elipse cairia bem e daria o tom correto e digno de uma sequência de melhor qualidade. Burger também se perde com as aparições da esposa em forma de fantasma, pois vinha bem conduzida até a cena da aliança ser jogada para o filho. Uma licença poética tem limites e não pode cair no artificialismo infantil do suposto corte do vínculo matrimonial. É desnecessário tal forçação de barra, com a iminente quebra de credibilidade autoral do realizador da obra.

Um drama mudo, com apenas sons do vento, da chuva, bombas explodindo e da respiração dos personagens angustiados pela guerra seria bem conduzido, se fosse um diretor como Ettore Scola na obra-prima O Baile (1983), dando uma dimensão exata de um país sendo atacado e a resistência francesa sendo massacrada; ou no excelente O Artista (2011), de Michel Hazanavicius, que levou a estatueta de melhor filme e tornou-se o grande vencedor da 84ª edição do Oscar deste ano. Faltou talento de condução para um filme completamente sem diálogos.

Sonata Silenciosa tem jeito de um longa pretensioso dentro de uma trama que tinha tudo para dar certo, porém é jogado fora este bom tema por Burger, que tenta mesclar drama de guerra com uma fábula adulta e o resultado piora ainda mais. Falta estrutura e um pouco mais de emoção e menos artificialismos num cenário de derrocada institucional, com planos equivocados sequenciais e muita previsibilidade para um roteiro sem grandes armadilhas.

sábado, 27 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (A Bela que Dorme)

















A Bela que Dorme

O veterano Marco Bellocchio está de volta e em grande forma com outro longa-metragem A Bela que Dorme na 36ª. Mostra de São Paulo. Realizador de entre tantas obras como Em Nome do Pai (1971), Bom Dia, Noite (2003), Irmãs Jamais (2011), e do estrondoso sucesso de público e de crítica Vencer (2010), exuberante ao contar de maneira simples e instigante o lado sombrio da vida de Benito Mussolini, seu passado de rejeição ao filho e abandono total à sua primeira mulher que contribuiu de forma decisiva para sua ascensão.

É seu último trabalho e aborda de forma multifacetada a polêmica sobre a eutanásia e sua complexidade, numa alusão explícita ao controvertido caso de Eluana Englaro, em 2009, na Itália, que teve desligados os aparelhos pelo pai, depois de 17 anos de coma oriunda de um acidente de carro, sendo possível somente com a autorização da justiça.

Bellocchio se debruça inicialmente na análise política, colocando igreja e governo em confronto, deixando o senador Uliano Beffardi (Toni Servillo) com a responsabilidade de uma decisão histórica na mão, pois se votar pela aprovação da lei reivindicada pela sociedade, estará indo contra sua própria consciência, tendo em vista problemas idênticos no passado com a própria esposa. Bate de frente especialmente contra a linha de seu partido e diretrizes traçadas pelo governo vigente sob o comando do demagogo primeiro-ministro Sílvio Berlusconi. Ameaça renunciar para não ter que votar pela derrubada da lei atual contrária à eutanásia, mas vacila e pensa no futuro, sob imensa pressão dos colegas do parlamento com seus velhos truques regimentais antiéticos nas sessões plenárias.

O drama tem outros desdobramentos interessantes como o protesto de Maria (Alba Rohrwacher), filha do parlamentar, uma integrante ferrenha do movimento pró-vida que faz o maior barulho panfletário na porta da clínica em Udine, onde está internada a enferma e pivô da situação. A garota apaixona-se por Roberto (Michele Riondino) que vive como um guardião do irmão maníaco-depressivo, opositores da garota e integrante de um movimento laico que vai noutra linha de raciocínio, numa conduta totalmente favorável à eutanásia.

O filme é complexo e em outra ponta do imbróglio está uma célebre atriz (Isabelle Huppert- sempre uma grande interpretação), que acredita que ambas, Eluana e sua filha, ainda viverão e poderão acordar a qualquer momento, fruto da fé fanática, pois acredita no milagre religioso da cura, por isso luta desesperadamente para salvar sua filha que está em coma irreversível há muitos anos e está como uma boneca na cama. Inclusive sacrificou sua relação de mãe com o outro filho, no intuito de alcançar a graça divina, anulou-se como profissional e deixou em segundo plano também o marido. Na relação das histórias que se convergem, há ainda Rossa (a bela Maya Sansa) que quer se suicidar a qualquer preço, pois entende que sua agonia contra as drogas, a qual é totalmente dependente, tem que terminar. Entende que a morte a libertará, mas o médico Pallido (Pier Giorgio Bellocchio-filho do cineasta) é radicalmente contrário ao desespero de sua paciente e se deixa confinar no hospital em defesa da vida.

O longa tem uma montagem interessante, ao misturar imagens de arquivos dos principais noticiários de telejornais de TV, entre elas algumas entrevistas de Berlusconi, com encenações bem elaboradas do filme. Mas as elipses são abruptas e cortam o clímax do enredo no prólogo, com cortes desnecessários e sem um critério apropriado nas diferentes linhas narrativas, deixando o espectador meio que perdido pela confusão de personagens que entram e saem a esmo.

O tema por ser contraditório, faz Bellocchio não se posicionar, deixando nas entrelinhas uma contrariedade implícita. Talvez por não querer se incomodar com a igreja, deixa tudo meio que no ar, completamente oposto a Mar Adentro (2004), de Alejandro Amenábar, que aborda de forma direta e contundente um homem que luta para ter o direito de pôr fim à sua própria vida. Lúcido e inteligente, luta na justiça pelo direito de decidir sobre seu destino, o que lhe gera problemas com a igreja, a sociedade e até os familiares.

A Bela que Dorme tem alguns problemas estruturais de continuidade numa montagem confusa, porém é uma obra até certo ponto de alguma coragem, com um controle emocional sob medida. Deixa em aberto a questão da eutanásia, se cabe ou não. É um tema polêmico que vai amadurecendo lentamente e as respostas são as mais diversas. A igreja católica com seu poder é contra, os políticos vão para aonde o vento soprar, bem ilustrado pelo psiquiatra à beira da piscina, enquanto isto fica uma indagação sobre o sentido da vida vegetativa ou a morte.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (A Caça)

















A Caça

Thomas Vinterberg em parceria Lars von Trier, em março de 1995, em Copenhague, lançaram um manifesto cinematográfico internacional denominado Dogma 95, um movimento estético, exatamente no centenário de nascimento da sétima arte. Começa com a publicação de dez regras de ética e valores, conhecidos como voto de castidade, tendo como o objetivo principal o resgate de um cinema mais realista e menos comercial, anterior à exploração industrial de Hollywood, caso aprovado pelos seus membros, recebe o Certificado Dogma 95. Foi a mais inventiva escola, depois da celebrizada Nouvelle Vague.

Von Trier dá a partida com Os Idiotas (1998), segundo filme do movimento, depois vem Dançando no Escuro (2000), com o Palma de Ouro em Cannes de melhor filme, consagra o Dogma 95 com o extraordinário Dogville (2003), que tem sequência com Manderlay (2005), também em grande performance e fiel ao seu estilo proposto de um cinema mais simples, sem muita luz artificial e com cenários externos exclusivamente. Mas foi Vinterberg que recebeu o selo nº. 01 de certificado Dogma 95 para seu filme Festa de Família (1998), que mostra uma sessão de terapia coletiva, revelando ressentimentos e aflorando fortes revelações num aniversário. Fracassou com Dogma do Amor (2003), melhorou muito e cresce com Querida Wendy (2005). Retornou com vigor e todo seu fôlego em Submarino (2010), deixando definitivamente para trás o movimento que criou, numa trama bem urdida de dois irmãos com grandes recordações e feridas abertas de uma infância conturbada pela tragédia da perda do caçula e, sobretudo, pela convivência diária com a mãe alcoólatra e agressiva com seus dois filhos maiores. Símbolo de um lar desestruturado e destroçado pelo vício e a morte rondando permanentemente.

Agora na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano lança A Caça, que tem uma trama centrada em Lucas (Mads Mikkelsen- impecável na interpretação) que acaba de se divorciar, com 40 anos, arruma um emprego numa creche de crianças até 6 anos, reconstrói sua vida com uma nova namorada e aos poucos vai conquistando a confiança do filho adolescente Marcus.

O grande mote do filme é a mentira e a injustiça que se faz sem provas concretas contra um homem inocente, não paira nenhuma dúvida para o espectador sentado na cadeira do cinema, mas a bola de neve que se espalhou contra Lucas é praticamente irreversível e o mal-estar vai tomando conta dos personagens envolvidos, inclusive o pai da suposta vítima e melhor amigo do acusado explode em fúria. Cria-se uma atmosfera de violência e vingança com o passar do tempo.

Vinterberg deixa propositalmente que o espectador saiba da inocência e a perversidade perpetrada contra aquele funcionário subalterno vitimizado pelo sistema feudal de bárbaros, tornando sua vida um inferno de Dante. É considerado por todos os pais como um bandido inescrupuloso, tomando conta a notícia após ser preso e responder processo. Espraia-se na comunidade pequena do interior da Dinamarca como uma rajada vinda de uma metralhadora giratória, inclusive com forte reação de truculência pelos empregados do supermercado. Um drama pessoal falsamente engendrado e levado em frente pela afoita diretora do estabelecimento, sem demonstrar qualquer cautela ou investigação preliminar, antes de imputar a culpa a seu subalterno de abuso sexual de uma criança, considera como definitivo o depoimento de uma menina de 4 anos.

O filme aborda a questão de forma transparente e coloca em xeque a crença de que crianças não mentem. A perversidade está nos rostos contraídos de cada pai e Lucas sofre indubitavelmente um linchamento moral sem precedentes, contrastando com a nevasca que cai e as luzes que iluminam o Natal, uma data de redenção e de amor, mas que passa distante daquele lugar. Ou seja, a infância não é um paraíso de inocência como pensam os pais. Freud constatou que os supostos ataques sexuais quase sempre existiam na imaginação dos pacientes e longe de uma realidade de pervertidos. Portanto, cuidado e muita cautela para o que as crianças dizem, pois não tem compromisso com a verdade.

A Caça lança para a plateia atônita que as evidências hipotéticas de um suposto crime não podem ser julgadas como definitivas, embora haja uma pequena verossimilhança e um induzimento contrário ao acusado. Lembram do caso de repercussão nacional da Escola de Base de São Paulo, onde a imprensa acusou, julgou e condenou sumariamente os proprietários daquele estabelecimento, sendo depois todos absolvidos pela justiça.

Um drama contundente sobre os preconceitos contemporâneos e de pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora e caolha sobre os direitos e princípios morais do indivíduo acuado e liquidado moralmente para a eternidade como se depreende da última cena da caçada no mato. Um instigante olhar reflexivo da injustiça pelo julgamento apressado, porém dilacerante nesta estupenda película dinamarquesa sobre a dignidade.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Shun Li e o Poeta)













Shun Li e o Poeta

Um filme surpreendente na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo é este fabuloso Shun Li e o Poeta, que procede da Itália em coprodução com a França, abocanhou três prêmios no Festival de Veneza deste ano, tem na direção o promissor Andrea Segre. Tem em sua filmografia filmes como Marghera Canal do Norte (2003), Che Cosa Manca (2006), La Mal’ombra (2007), A Sud di Lampedusa (2007) e Como um Homem Sobre a Terra (2008), participou da 33ª. Mostra de São Paulo.

Este longa é um retrato sobre o preconceito racial, a intransigência e, sobretudo uma solidariedade em forma de uma grande amizade despida de sexo. Há pureza e sensibilidade no relacionamento entre dois seres que trilharam o mesmo caminho da imigração por vias da transgressão. O orgulho ferido e a desconfiança estão presentes em meio ao clima de poesia e beleza plástica fascinante do lugar.

Shun Li (Zhao Tao- de boa atuação) é uma chinesa que foi transferida de Roma, onde era costureira, para Chioggia, uma pequena ilha de pescadores na região do Vêneto, para trabalhar num bar, à beira de um rio, onde estão ancorados os barcos de diversos tipos e tamanhos dos nativos dali. Sofre inicialmente com a comunicação, pois fala apenas sua língua e até a aprender o idioma italiano há bastante dificuldade, mas se esforça muito. Sua vida é só trabalho e a cobrança existe de seus chefes chineses, que nunca dizem quando trarão seu filho menor da China. Não sabe quanto deve e se haverá realmente o reencontro, diante das precárias informações, apenas lhe resta submeter-se em decorrência da sua ilegalidade daquela imigração.

O cineasta habilmente estabelece um vínculo de amizade da chinesa com o velho pescador Bepi, conhecido como o Poeta (Rade Sherbedgia- em desempenho irretocável). Uma pessoa de bom coração que desconhece as origens de seu pai, apenas lembra que está ali há 30 anos, vindo da extinta Iugoslávia, ainda sob o regime comunista de Tito e estabelecem um paralelo sobre o governo de Mao Tsé-Tung, embora sem aprofundar-se em causas e efeitos, que estão subliminarmente nas entrelinhas. A trama mostra que Shun Li também tem seu poeta no seu país natal, fala das reverências que são feitas nas águas em qualquer lugar para comemorar seu dia. É inevitável o surgimento de um vínculo de afeto naquela relação sensível e calorosa de sutilezas para os espíritos solitários, mas que botam fé no objetivo a ser buscado.

Há cenas de radiante lirismo como a visita de Shun Li num barco pesqueiro até a cabana fincada no meio do rio, onde Poeta mora e guarda seus apetrechos de pesca. Ali há as confissões singelas da jovem e sua história comovente para reencontrar o filho ausente e toda a tristeza que habita seus olhos, coração e alma. Logo surgem rumores maliciosos e preconceituosos de que uma máfia de chineses usaria garotas para casarem com os velhos e herdarem terras e bens, com o intuito de tomarem conta de redutos italianos. Um filme que aborda no truncamento da relação de amizade pueril entre duas criaturas opostas apenas pelas raças e idades, mas próximas por um vínculo de solidariedade e despidas de preconceitos, onde a truculência se instala e eclode sob o manto da intransigência racial, fruto de uma xenofobia escarrada, com hostilizações animalescas a pessoas de cores e idiomas diferentes.

Numa analogia que deve ser ressaltada, o cineasta finlandês Aki Karismäki ambienta com bastante eloquência este tema no filme O Porto (2011), na cidade portuária Le Havre, na gris e sorumbática região da Normandia, retratando a solidariedade e a amizade aos imigrantes que desembarcam clandestinamente na França, sendo mais otimista que Claire Denis no instigante longa Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke; sem esquecer de O Visitante (2006), de Tom McCarthy, sobre a situação dos imigrantes ilegais, também se questionava a política xenofóbica aplicada institucionalmente nos EUA, derivando daí o ódio entre as raças.

Shun Li e o Poeta não é somente uma película de pura poesia na defesa da solidariedade e da amizade, mas antes de tudo um manifesto pela integração inter-racial, servindo como reflexão dos excessos primitivos arraigados em populações conservadoras num ambiente carregado de certa forma. Aponta o epílogo para um melhor bom senso, neste manifesto crítico como um libelo contra a intransigência dos povos ditos de primeiro mundo, irascível de uma política de imigração abominável que deve ser questionada à exaustão.

Mostra de Cinema São Paulo (O Gebo e a Sombra)















O Gebo e a Sombra

Manoel de Oliveira parece um garoto de cabeça arejada e juvenil que fará 104 anos no dia 11 de dezembro. Embora seja um veterano na sabedoria, experiência e galhardia, no seu velho estilo formal e clássico de fazer cinema da melhor qualidade para um público ávido da essência da sétima arte, cada vez mais rara e distante, diante das mediocridades que se acumulam e brotam volumosamente pelas salas nas sessões teoricamente ditas vanguardas ou classicismos superados por formas esgotadas e velhacas.

O velho mestre português continua cada vez mais inspiradíssimo e novamente sua lucidez é abundante e não para de transbordar, tornando-o imortal e interminável para o bem dos cinéfilos que adoram ver uma obra deste tamanho como O Gebo e a Sombra, baseada numa peça de quatro atos, aproveitadas apenas três, escrita nos anos de 1920, pelo dramaturgo português Raúl Brandão. Desfila seus personagens heterogêneos nas telas escuras das salinhas, levando um frescor invejável e uma aula para todos que saboreiam um bom cinema. E já está trabalhando no seu próximo filme que será baseado no conto A Igreja do Diabo, de Machado de Assis.

Este seu último longa-metragem aborda o velho cansado contador e cobrador Gebo (Michael Lonsdale- que arrasa e comove em seu papel) que continua trabalhando para sustentar a família até altas horas da noite, fazendo escrituras contábeis num velho e surrado livro-caixa. Vive a com a esposa Doroteia (Claudia Cardinale-a veterana continua em boa forma) sempre na expectativa da volta ao lar do filho. Seu marido evita a qualquer preço magoá-la se contar as falcatruas do fruto de seu amor fiel, extraordinário e inesquecível pelas suas circunstâncias peculiares. Na mesma casa mora com eles a nora Sofia, chamada de filha pelo sogro (Leonor Amarante- presente na sessão de estreia em São Paulo), que sofre calada a ausência e teme o regresso do esquisito e rebelde marido João (Ricardo Trêpa- atuou em outros longas, entre eles o ótimo Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), em atuação irreparável o neto do diretor). Faz parte ainda do elenco a vizinha fofoqueira Candidinha (Jeanne Moreau- outra veterana em grande forma) e o vizinho amante da poesia e das artes (Luís Miguel Cintra- que também não deixa a peteca cair).

Oliveira sabe como ninguém montar uma locação singular numa sala quase escura de uma casa antiga e em estado de decomposição, dando um foco principal para Gebo escrevendo no seu livro-caixa, refazendo cálculos de cabeça e sem máquinas auxiliares. Vara noites intermináveis para ter o sustento humilde, mas com honestidade da família. O café é sorvido como uma saborosa droga, acompanhado de biscoitos para manter-se ativo e não dormir, apesar da velhice que lhe assola, não desiste e vai em frente para ter o que comer no dia seguinte. Há nestas cenas uma alusão à crise preocupante da Europa e os estouros financeiros das economias de países como Grécia, Espanha e no caso específico, Portugal.

A grande expectativa do longa é a espera do filho pela mãe e pela mulher. Não existem indicativos concretos onde possa estar João, podendo ser um prisioneiro por atitudes e atos ilegais, porém ao sussurrar para sua nora em desespero, filosofa: “eu grito por dentro, mas falo baixo”.

É inegável que o cenário de um ambiente soturno ajuda o roteiro teatralizado com eloquência soberba, mas com uma linguagem indiscutivelmente cinematográfica. A fotografia é artesanalmente deslumbrante e realizada em meios-tons, sendo iluminadas apenas pelos lampiões antigos e velas nas partes superiores, uma bandeja com saborosas maçãs vermelhas, lembrando um quadro de arte, paredes rústicas, uma mesa antiga e uma porta que se abre em forma de cortina de teatro para a entrada em cena dos protagonistas em forma de dramaturgia clássica.

O veterano diretor mantém intacta a figura da mãe na esperança de saber a realidade sobre seu filho, um rapaz revoltado e que não aceita ser pobre, tal qual a genitora é ambicioso, custe o que custar e não aceita a mesmice que lhe revolta, bem como a rotina dos pais e da acomodada mulher, logo surge como um furacão fantasmagórico na sala para refutar a miséria, pois a honra dos pais lhe soa como algo promíscuo e abjeto. O diretor segue sua trajetória de dignidade e na reta final a confissão falsa é um sinal de que a vergonha e o amor pela mulher e o filho falam mis alto, contrapondo a honestidade com a ilegitimidade dos meios. João busca a liberdade como se depreende metaforicamente nos barcos ancorados na cena inicial, pensando deixar suas origens para trás e dar voos além-mar.

Oliveira ironiza a sociedade burguesa de Portugal com sua maestria formal como se fosse uma solenidade de um teatro de mentiras e prisões, num filme instigante e perturbador pela sua complexidade, desenvolve com soberba lucidez um estonteante painel de metáforas, encontradas nesta autêntica mini obra-prima, escalando-se como um dos favoritos para abocanhar o prêmio de melhor filme desta 36ª. Mostra de São Paulo, depois de ser bem recebido no Festival de Veneza.

Mostra de Cinema São Paulo (Herança)













Herança

Assim como surgiu estreando atrás das câmeras Sandrine Bonnaire com o ótimo Na Sua Ausência (2012), outrora uma ótima atriz, também estreia como diretora a israelense Hiam Abbas, que interpretou ótimos papéis em filmes como A Noiva da Síria (2004), Free Zone (2005) e Munique (2005), sempre em grande estilo. Seu primeiro longa é este magnífico Herança, onde também atua em boa forma. Demonstra-se uma cineasta competente e já dá sinais de ser plenamente autoral. É um bom candidato ao melhor filme da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

A trama está centrada numa família de uma aldeia no norte da Galileia, no conflitado território reivindicado pelos palestinos. Reúnem-se para celebrar o casamento de uma das netas de um velho patriarca e tradicional morador daquele lugar. Inesperadamente entra em coma e conflitos internos explodem no seio familiar, enquanto a morte está rondando cada vez mais o enfermo.

Herança é um belo painel sobe os conflitos familiares e serve de metáfora para as constantes guerrilhas entre Israel e os habitantes do propalado futuro Estado da Palestina. A crítica situação do avô da noiva em coma nada mais é do que a crônica doença instalada na região convalescente e sem cura entre palestinos e israelenses, sempre em disputas acirradas, onde aviões de guerra rasgam o céu e bombas explodem por todos os cantos e acabam por interromper o casamento, com o soar intermitente das sirenes. Tudo funciona como elementos de uma agonia martirizada para seus habitantes.

Abbas aborda o tenso e comovente embate com a proximidade da morte rondando o patriarca. É metaforicamente o Estado com seus filhos brigando por dinheiro ou em delicadas situações da tradição árabe. São cinco filhos antagônicos: o médico estéril e perdido na continuidade do matrimônio com a bela esposa que insiste em ser mãe; o advogado que trai a esposa que não ama e é candidato a prefeito, sofre acusações de ser colaboracionista dos inimigos; o pequeno empresário e pai da noiva é um fracassado nato, está de olho no espólio e nem espera o pai morrer e já vai atrás das assinaturas dos irmãos para administrar os bens, mas tem como característica principal não pagar seus credores; a irmã mais velha é casada com um taxista moralista que finge trabalhar; mas a grande sacada do longa é a filha caçula que namora um professor inglês, embora prometida em casamento para um primo, rebela-se e vai às ultimas consequências.

O drama retrata com grande fidelidade como símbolo da resistência a garota hostilizada, caçulinha da família, mas que sabe o que quer. Seu confronto com os irmãos e demais parentes, exceto a irmã da noiva e a mana mais velha, é a alegoria da liberdade como os pássaros que voam para irem ao encontro de seus destinos, como ela mesma profetiza. Herança reflexiona a opressão envolta dos tabus familiares incrustados naquela região belicosa de pessoas conservadoras, com suas tradições decorrentes de uma cultura que impede a felicidade de quem quer ter liberdade em decidir seu futuro. A menina rebelde é alcunhada de piranha e traidora, por ter ideias próprias e almejar uma independência que não é bem vista entre a maioria de seus parentes.

Um filme que se insere como um grande observador dos conflitos entre palestinos e israelenses com as metáforas familiares servindo como reflexão de um novo amanhã, embora o presente esteja eivado de cicatrizes abertas dos conflitos internos e externos pelos excessos da cultura ainda primitiva e conservadora arraigada nas populações e das comunidades próximas. A diretora criou personagens psicologicamente fortes em sua construção, embora contraditórios, onde não há inocentes pelas circunstâncias das peculiaridades que dão consistência para este muito bom drama de uma neófita.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (A Parte dos Anjos)
















A Parte dos Anjos

Está de volta o festejado diretor inglês Ken Loach com seu último longa A Parte dos Anjos, vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano, e de boa receptividade na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo. É um cineasta com o viés para a defesa dos oprimidos, desvalidos e marginalizados da sociedade de consumo capitalista. Assim foi em seus filmes anteriores Terra e Liberdade (1994); A Canção de Carla (1996); o vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes com Ventos da Liberdade (2006); e À Procura de Eric (2009), que abriu a 33ª. Mostra de São Paulo daquele ano.

Há uma mescla de comédia dramática com policial de crítica social nesta trama que tem como protagonista Robbie (Paul Brannigan) em busca da redenção e reinclusão na sociedade dos iguais de Glasgow, na Escócia. Sua trajetória é marcada por furtos, roubos, arruaças e mostra-se uma pessoa violenta com seus semelhantes, como visto na audiência com sua vítima. Ele e os amigos escapam de uma punição severa, sendo substituída por trabalhos comunitários, sob a vigilância de seu educador e responsável Henri, um bonachão, boa praça e empenhado na regeneração do rapaz desajustado, tornando-se seu mentor e conselheiro de todas as horas.

Surge um fato novo que poderia encaminhar Robbie para uma vida decente: o nascimento do filho e seu amor pela mãe da criança. Ela é descendente de um renomado e truculento empresário, por consequência, também está com os dias contados por ali, pois o futuro sogro oferece-lhe dinheiro para deixar sua filha em paz e sumir do mapa. Manda bater violentamente no genro rejeitado e profetiza: “quem entra para este tipo de coisa, nunca mais sai”. Dói esta afirmação, logo parte para o ataque, pois algo tem quer ser feito, custe o que custar, raciocina e entra em ação o espírito aventureiro e descompromissado.

O fora da lei não se dá por vencido e logo descobre que tem talento para degustador de destilados excepcionais e caríssimos no mercado aristocrático de grandes colecionadores, após passar por algumas sessões em destilarias diversas com seu amigo e mentor, sempre acompanhado da turma. Aparece a grande chance em Edimburgo, a capital escocesa, ao participar de um seleto leilão de um uísque considerado o melhor do mundo, que se encontra ainda num raro barril de carvalho por anos a fio. Monta um plano mirabolante para ganhar dinheiro fácil, sem fazer força, embora tenha jurado para a família que iria se regenerar. Nem a profecia maldosa do sogro o fez voltar atrás.

Loach dá um empurrãozinho para seu protagonista ter um promissor futuro, depois de várias surras, ameaças e erros crassos no encaminhamento de vida. Fica a indagação: o crime compensa? Embora não explicitado, parece que sim, com alguns rodeios, subterfúgios e derrapadas, a vida segue. Paradoxalmente há uma clara alusão a babaquice norte-americana de bons e espertos em tudo, entendidos das coisas mundo, quando há a alusão do cidadão americano que leva um fragoroso golpe e é derrotado visceralmente, ao cair no conto do leilão escocês.

Todos merecem uma nova chance é o que indica A Parte dos Anjos como reflexão de um final politicamente incorreto dentro de um contexto do protagonista que estaria sendo perseguido, sob a ótica do roteiro dúbio. Ou seja, ainda que “os fins justifiquem os meios”, como ensinava Maquiavel, tudo pode acontecer e justificar-se pelo coitadismo, até as cenas de escatologias escarradas e nauseantes refletidas nos espectadores. Mas Loach tem crédito com seu público fiel, e até pode ter passado batido em parte, nesta apenas razoável comédia que está abaixo da média e não atinge méritos maiores, por decorrência da inegável e conhecida obra do cineasta, razão pela qual se cobra muito mais, pois não se compreende uma escorregada tão elevada.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Rio)




















Rio

O veterano cineasta Ryuichi Hiroki retornou dos EUA para seu país em 1994, depois de receber uma bolsa de estudos nos Festival Sundance e agora completa dez longas com Rio, em cartaz na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano. É considerado um dos mais criativos diretores do cinema japonês, no entanto, seus filmes são inéditos no mercado comercial brasileiro. Lança mão de um tema escorregadio como a morte de um rapaz em circunstâncias trágicas e o retorno da namorada três anos após para lamber as feridas ainda abertas pela perda, com as lembranças que lhe atormentam e promessas truncadas de realizações do casal, desfeitas pelo casuísmo acidental. Tudo poderia indicar para um melodrama fácil e piegas, mas não acontece nada disto.

A trama tem como protagonista Hikari (Misako Renbutsu- a bela japonesinha de grande atuação) em busca de mais informações sobre a morte de seu namorado Kenji, num massacre que ocorreu em Akihabara, um distrito industrial de eletrônicos próximo de Tóquio. Já na cena inicial a linda jovem se encosta próximo da porta do metrô, sob um silêncio respeitoso e eloquente, sem trilha sonora ou som ambiental. Parte em busca de uma explicação para si dos fatos nebulosos não superados, embora sem sentimento de culpa, sua estabilidade emocional está em frangalhos, bem retratados num clímax de perplexidade.

O diretor é inventivo e aproveita a trajetória da protagonista para abordar subtemas interessantes e necessários que assolam o Japão, tais como: prostituição, falta de emprego e invasão da privacidade. Começa com uma repórter fotográfica invasiva que insiste em fazer imagens, atropelando os princípios éticos e o respeito da dor de um momento particular de Hikari; ou da garota que atua em filmes pornôs, em busca de uma carreira promissora; tem a cantora que embala os transeuntes com canções sobre o amor e a vida da árvore e sua origem; e as moças que distribuem folhetos de uma disfarçada cafeteria de programas rápidos, numa flagrante prostituição à luz do dia.

Mas a grande sacada de Hiroki é o encontro com o rapaz de rua que puxa carrinhos com eletrônicos para serem vendidos no mercado negro. Perdeu os pais no tsunami de Fukushima e carrega o sentimento desesperado de encontrar os corpos para sepultá-los. Há um conhecimento dele com o morto, o que abre caminhos para uma interação com diálogos sobre a dura realidade entre aqueles dois seres perdidos e sem uma visão do que querem realmente para o futuro. O cineasta nasceu em Fukushima e ao colocar as cenas da busca do órfão pelos pais nos escombros, fica evidente e torna-se reveladora sua dor fundida no personagem, como se fosse um alter ego. São chocantes as imagens da catástrofe inimaginável de carros, casas, prédios e postes retorcidos como ferros velhos, ruas sem calçamento, esburacadas, sem luz e água, restando apenas um cão como sobrevivente nas ruínas.

O filme é cortado da cena arrasadora e logo ingressa no dolorido passeio de barco pelo rio pactuado antes do trágico desenlace de Kenji. Mesmo como se estivesse ao lado de uma sombra, a promessa é resgatada para uma alma que parece andar em círculos e divagando. O barco anda lentamente, surgem luzes nos prédios enormes e o rosto de Hikari se contrai como uma massa em degelo. Sobra o agradecimento e a demonstração de gratidão pelo que estivesse escondido em seu interior uma outra mulher.

Rio é um longa que se insere como uma reflexão sobre a morte prematura e os sentimentos que latejam na alma para evitar o soçobramento de uma criatura sensível que busca a desconstrução traumática da perda. Lança um olhar de dor e inconformismo com o fenômeno arrasador da natureza que comoveu o mundo com a destruição implacável de uma cidade. E aborda temas presentes como prostituição e desemprego, este bom drama que surpreende e atinge seus propósitos em decorrência de méritos inegáveis.

Mostra de Cinema São Paulo (Tabu)






















Tabu

Surgiu um outro forte candidatíssimo ao melhor filme da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, o extraordinário longa-metragem português Tabu, dirigido pelo já considerado jovem experiente diretor Miguel Gomes, de apenas 40 anos. Obteve os prêmios da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica e da inovação (Prêmio Alfred Bauer) no Festival Internacional de Berlim, em fevereiro de 2012. Tem na sua filmografia cinco curtas-metragens e outros dois longas elogiados, como A Cara que Mereces (2004) e a obra-prima Aquele Querido Mês de Agosto (2008), que gira em torno dos acasos e das situações genéricas e peculiares de uma região, com seus belos fados portugueses e suas idiossincrasias regionais, deixando-se levar pelos truques surpreendentes e absorver este filme lusitano de uma remodelada forma de fazer cinema, com sua tradição e os conflitos pessoais surgidos no enredo.

Ao se falar em cinema de Portugal, logo se pensa em Manoel Oliveira, o maior diretor da história daquele país. Porém, há outras cabeças pensantes e com grande imaginação cinematográfica, como por exemplo Miguel Gomes, antes de tudo um cineasta competente e autoral, de alto grau de criatividade estética. Em seu último filme tem como trama uma idosa temperamental, a empregada oriunda de Cabo Verde e uma vizinha dedicada para as causas solidárias e sociais. O cenário inicial é um andar de um prédio em Lisboa. Tão logo morre a senhora, as outras duas protagonistas passam a conhecer melhor o passado da misteriosa vizinha falecida e um episódio sobre uma história de um grande romance e um crime passional numa África repleta de aventuras e desavenças.

O longa é dividido em duas partes, sendo que a primeira segue uma linha de apresentação das personagens propriamente dita, onde a idosa dá sinais evidentes de bipolaridade e um discreto delírio persecutório, invocando rituais e feitiços teoricamente feitos pela empregada negra, o que se revelará na segunda parte todas as acusações alucinatórias, pelo passado que se remete para a África, onde morava no Monte Tabu. Era filha de uma família aristocrata, mas com problemas terríveis de relacionamentos e com suicídio de um membro familiar, uma moça mimada, paparicada e com gostos duvidosos, com a obsessão por crocodilos.

O filme é em preto e branco, o que dá uma beleza controvertida e cria um clima de tensão na segunda parte, com a narração firme na primeira pessoa do grande pivô do amor proibido e causador de estragos irremediáveis na aldeia, desencadeando uma guerrilha entre as raças ali existentes, onde os africanos estavam em maioria e aos poucos dão mostras do que querem e podem como fica caracterizado nas entrelinhas do drama. Gomes demonstra ser um artesão na captação de sons e as belas imagens da região das savanas com seus locais pitorescos e bucólicos. É bem ilustrado na cena da piscina rudimentar, onde o triângulo amoroso está prestes a eclodir numa desesperada saída pela fuga, embora as circunstâncias sejam todas desfavoráveis e contrárias a grande paixão proibida, já revela sua intenção metafórica da invasão de desconhecidos e predadores a um universo aparentemente calmo e inofensivo.

O diretor busca na banda sonora a sua essência para afastar os fantasmas que teimam em permanecer, demonstrando com clareza a refutação do indivíduo invasor nas canções, pois o som não é dependente da imagem, busca a pessoalidade e não o experimentalismo da suposta amizade entre rivais, embora haja e esteja implícita a renovação e o desagregamento familiar. A efetivação do grupo musical e suas meteóricas apresentações surgem como por acaso num inusitado triângulo das relações afetivas, assim como houvera no longa anterior Aquele Querido Mês de Agosto, onde havia um clima de dor e morte no ar entre um pai, sua filha e o primo da menina, integrantes de uma banda folclórica portuguesa. Gomes usa musicalidade para se comunicar e estabelecer um elo de relação e construção de personagens doloridos e vítimas do tempo e das paixões irrefreadas no mais absoluto formalismo estético.

Tabu é antes mais anda uma elaboração sequencial de planos com elipses perfeitas dos desatinos na busca da elucidação dos segredos do passado construídos pela grande decepção amorosa decorrente de uma retórica proibitiva em sintonia com as mazelas de uma aldeia africana, com sua pobreza e a luta para emancipar-se. Um filme fabuloso de personagens fortes em sua construção, embora fragilizados pelas circunstâncias que dão consistência para este imperdível drama traumático familiar.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Os Selvagens)














Os Selvagens

Outro filme que decepciona 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo é Os Selvagens, também exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes deste ano. Vem da Argentina em formato de um misto de faroeste com drama rural, tendo na direção o estreante em longas Alejandro Fadel, que já dirigiu três curtas e foi corroteirista de Pablo Trapero em Leonera (2008), Abutres (2011) e o inédito Elefante Branco (2012).

A trama gira em torno de cinco adolescentes que fogem de um reformatório de uma província na Argentina. O diretor centra nos quatro rapazes e uma moça sempre drogados na busca da almejada liberdade para dar continuidade às suas vidas marcadas por crimes, roubos e assassinatos de familiares. Fadel não consegue manter a intensidade da dramaticidade como no longa iraniano O Caçador (2010), de Rafi Pitts, onde o protagonista tem como passatempo se embrenhar na floresta e caçar para aliviar as tensões do trabalho e o estresse da vida cotidiana e monótona para buscar a paz entre as árvores e a caça como entretenimento e refúgio de dias passados atrás das grades e uma tragédia que se prenuncia.

Os Selvagens começa com bastante fôlego na peregrinação dos garotos por dentro de uma floresta com mais de cem quilômetros. Eles buscam uma saída andando a pé, demonstrando fatiga e divergências de lideranças dentro do grupo. Caçam porcos do mato, também conhecidos como javalis, comem galinhas, entram em casas antigas para roubar e matar a sangue frio, sem dó e nem piedade, sempre sob o efeito de drogas potentes como a cocaína. Mas o cineasta erra a mão e torna este longa, que tinha tudo para ser um bom filme, em apenas uma realização razoável diante de seus enormes defeitos estruturais e frágeis, embora tivesse uma proposta abrangente de seres atormentados e em fuga pela liberdade na busca de um espaço. Ao mesclar a coragem com buscas espirituais e alguns rituais que se tornam enfadonhos, tentando acreditar em mudanças sobrenaturais. Surge ainda a patética figura do homem eremita com a bandeira surrada da Argentina hasteada em sua casa fincada no meio do matagal, apenas balbucia que matou uma jovem que perguntava demais. Fica como uma peça solta da engrenagem à deriva de um roteiro esfacelado.

Não houve uma reflexão e sequer uma análise mais profunda das causas e efeitos daqueles jovens que passaram a conviver como silvícolas, exceto algumas insinuações pueris. Ou na construção psicológica do abrutalhamento de seres animalescos, embora juvenis, ainda que demonstrando ligeira doçura nas relações sexuais. O drama peca do meio para o final, quando o roteiro perde harmonia e contundência naquela viagem progressiva rumo ao desconhecido ou um imaginário criado pelos personagens para tentar manterem-se com esperanças. Mas a monotonia começa a tomar conta do enredo e a mesmice se torna completa, deixando traços de insatisfação nos espectadores e a perda completa do controle do filme, que desce ladeira abaixo nos minutos finais.

O longa perde o sentido e o rumo do objetivo principal que é manter-se para uma nova vida. Porém, os resultados estéticos e reflexivos ficaram longe do desejado, reduzindo um bom projeto para uma obra menor e precária.

Mostra de Cinema São Paulo (Na Sua Ausência)
















Na Sua Ausência

Surge um candidato forte ao melhor filme da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, o magnífico longa-metragem francês Na Sua Ausência, dirigido pela outrora ótima atriz e agora estreando atrás das câmeras Sandrine Bonnaire. Mostra-se uma diretora competente e seu primeiro filme já dá sinais de ser plenamente autoral.

A trama começa com Jacques (William Hurt- de desempenho exemplar) retornando dos EUA para a França, depois de dez anos de ausência de seu país natal, para cuidar do funeral de seu pai, que estava separado de sua mãe, uma americana que vivia com ele na América do Norte. Deixara seu país após a morte e seu filho de apenas sete anos, decorrente de um acidente de carro. Ao retornar encontra a ex-mulher Mado (Alexandra Lamy) já casada e com um filho da mesma idade do morto, de aspecto feliz e aparenta ter esquecido o passado trágico. Bonnaire mostra o tenso e comovente reencontro de Mado com Jacques, onde as aparências do passado surgem e se confundem com um presente fragilizado pelos fantasmas que querem retornar. O retorno à casa da ex-mulher e sua instalação secreta no porão é o começo da degradação e do desespero que irá ir ao encontro da família hostilizada pelo passado.

O longa mostra uma tentativa desesperada de reaproximação com o filho de Mado. Tudo é feito por Jacques para resgatar e recriar a relação existente entre pai e filho até o fato trágico. A culpa e o sentimento que assolam aquele pai transtornado, em vias de perder a estabilidade emocional, são bem retratados pela diretora e atinge um clímax de alta tensão, embalados pela adequada e bela trilha sonora. A cineasta lança mão de um expediente perigoso, mas acaba por se dar muito bem, ao desenvolver com dramaticidade em alta tensão a morte de uma criança inocente e jogar a culpa aparente para que o pai assuma inteiramente, levando até as últimas consequências, inclusive desfazendo-se de seu patrimônio para tentar beneficiar um terceiro e apagar de sua consciência aquele sentimento latejante e dolorido da culpa que o corrói.

Este é um tema frequente no cinema, mas o filme mais contundente dos últimos anos é o extraordinário Anticristo (2009), de Lars Von Trier, abordando um casal devastado com morte do único filho muda-se para uma casa no meio da floresta para superar o episódio, tentando supera a dor do luto e o desespero da mãe, desencadeia-se uma gama de acontecimentos misteriosos e assustadores. Na Sua Ausência é um filme que já se insere como um grande observador pela reflexão da culpa vista como excesso e do sentimento que lateja na alma do suposto culpado que começa a perder a lucidez e a afundar-se num terrível destroçamento humano e a desconstituição de uma pessoa traumatizada pela perda.

O filme é uma sequência de desatinos da sedução e em busca de uma paternidade construída pela fobia da morte. Ao mostrar a distorção comportamental de um protagonista em total decomposição, como um farrapo humano, a diretora lança um olhar de compaixão ao perdoá-lo no epílogo, dando um rumo de destino duro, mas dentro de uma realidade verossímil, através da ação enérgica de atitude do outro pai vitimizado pelo contexto e do imbróglio de circunstâncias alheias aspiradas. Um longa de personagens fortes em sua construção, embora fragilizados pelas circunstâncias que dão consistência para este fabuloso suspense psicológico familiar.

Mostra de Cinema São Paulo (A Colônia)

















A Colônia

Entre tantas retrospectiva da 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano, está sendo apresentados diversos filmes na homenagem merecida a Sergei Loznitsa, e entre eles o documentário humano, sensível e profundamente abrangente A Colônia (2001).

A trama se passa em apenas um dia na vida de uma colônia de doentes mentais na Rússia, onde pessoas com sérios problemas de coordenação motora são enxotadas do convívio social e vão parar naquele bucólico lugarejo de deficientes, com uma bela paisagem, aparentemente bem tranqüila e sonorizada pelo canto dos pássaro, transmitindo a imagem de uma aldeia de seres puros e felizes, onde pessoas vivem para trabalhar juntas e unidas, demonstrando uma completa harmonia e com valores próprios inarredáveis.

O longa ao se desenvolver em seus 79 minutos deixa transparecer a crescente e inexplicável sensação de um sentimento de ansiedade de seus personagens, beirando com bastante eficácia a desesperança, como no bater com raiva na madeira compactada até rachá-la, ou no andar lento dos personagens com foices e ferramentas para catar o feno para os animais alimentarem-se. A Colônia é uma fabulosa alegoria que coloca personagens doentes da própria sociedade russa, uns ainda trajando uniformes em frangalhos do Exército de seu país, onde o cenário retratado nada mais é do que uma comunidade em franca subserviência ao regime comunista, que já dá sinais evidentes de decomposição. E sob os olhos dos enfermos vê-se um país de pessoas que andam e se movem bovinamente, tais quais os animais ali existentes.

A película está fortemente concentrada nas entrelinhas e mostra uma aldeia quase que imersa numa tranquilidade falsa. Porém nada mais é do que um engodo dos governantes para manter um sistema falido e em vias de extinção, através de gestos e atos daquelas criaturas ditas humanas, porém extremamente robotizadas como animais domesticados, simbolizados pelo touro que se move, muge, mas aparenta ser cordato e não agressivo, distante de rebelar-se. O documentário enfoca tanto o animal como os doentes vivendo seu dia a dia placidamente, esperando a morte chegar, sem se opor. Também o feno é movido de um lugar para outro sem grandes mudanças geográficas ou que ferisse as circunstâncias da aldeia. Tudo é feito no mais profundo silêncio, onde os diálogos inexistem e dão lugar para um cenário em preto e branco, através de uma fotografia bem caracterizada pela falta de cores e que demonstram a tristeza e a desolação nos semblantes dos protagonistas.

O longa vai fundo e mostra o surgimento de um futuro sinistro e sem ambições, de poucas esperanças, pelas lentes de Loznitsa, como bem apanhado na estupenda cena final, onde os rostos sulcados pela marca do tempo que passou são jogados na tela em closes. Este é um filme com harmonia numa estética simples, onde a incomunicabilidade pode estar querendo se apresentar num primeiro momento, mas logo a comunicação entre os personagens se faz presente e seus grunhidos são perfeitamente perceptíveis como numa metalinguagem de dramaticidade sutil, mas em que a abordagem foca na desesperança e no mais absoluto pessimismo neste agoniado documentário alegórico nada alvissareiro para os seres humanos.

domingo, 21 de outubro de 2012

Mostra de Cinema São Paulo (Indignados)














Indignados

A trajetória do misto de documentário com ficção de Indignados é basicamente centrada na figura da africana Betty (Mamebetthy Honoré Diallo) e seu périplo por países europeus. Uma jovem imigrante que foge de seu país, para aventurar-se pela Grécia, França Turquia e Espanha, num momento difícil destes povos que estão em iminente efervescência de uma crise econômica inimaginável.

Indignados aborda um tema universal que é a ilegalidade dos imigrantes e seus ingressos na sociedade, oriundos da África e Ásia na sua maioria. O filme é muito simples na sua estética, um documentário aparentemente realizado para um canal de televisão ou propaganda eleitoral de algum partido, onde o choque cultural da africana é mostrado em longos planos de sequência, cansativos e enfadonhos, causando enormes bocejos na platéia. As manifestações de ruas são vazias e os gritos de revolta da população estão sempre acompanhados do forte componente do panfleto demagógico, sem grandes rodeios ou simbologias das desgraças sociais.

O longa não tem a profundidade de um filme como O Porto (2011), do finlandês Aki Karismäki, que aborda o sofrimento e a ojeriza de uma casta que vira as costas, fruto da xenofobia racial, com um olhar de misericórdia e esperança, nem de Claire Denis no instigante Minha Terra, África (2009); ou do arrasador O Segredo do Grão (2007), do tunisiano Abdellatif Kechiche; ou ainda do contundente Cachê (2003), de Michael Haneke; ou do recente campeão de bilheteria Intocáveis (2012), de Eric Toledano e Olivier Nakache, sobre uma história real de uma inesperada amizade genuína, entre um milionário tetraplégico e um ex-assaltante de uma joalheria, um imigrante do Senegal que busca seu reingresso social na França dos brancos.

O diretor Tony Gatlif exagera nas simbologias, como da latinha descendo ladeira abaixo ao som de uma trilha sonora enervante; ou ainda das laranjas indo parar dentro do barco, esta sim uma metáfora inteligente sobre a vida e os sem rumos que se encontram todos no mesmo lugar. Peca com os excessos de planos de ruas ou na interminável apresentação teatral. Arroubos infanto-juvenil são passados como se fossem um protesto edificante, longe de Cosmópolis (2012), que se debruça sobre a derrocada do Capitalismo, dirigido pelo canadense David Cronenberg, em mais um filme experimental de sua cinebiografia.

O cineasta se deixa levar pelos impulsos e ojerizas contra tudo e contra todos, como num manifesto de rebeldes sem causa, embora tivesse um bom conteúdo como do Movimento Ocupe que se espalhou pela Europa, onde homens e mulheres lutavam contra os poderosos, vistos pelo olhar da moça negra ao confrontar uma dura realidade de uma implosão social que aos poucos vai encontrando pessoas pelo caminho, juntando-se como um ato de solidariedade, buscando colocar valores humanísticos no centro do sistema em decomposição.

Eis um longa-metragem pretensioso, porém é jogado fora este bom tema por Gatlif, por escassez de harmonia e por não saber conter a ansiedade do contraditório. Erra feio a mão por exceder na linguagem e deixar em falta a dramaticidade numa trama que tinha tudo para dar certo. Faltou talento e sobrou revanchismo numa abordagem que se tornou tola e beirando a idiotice, diante da babaquice do cineasta. Lamentável e quem puder fuja de Indignados na 36ª. Mostra de Cinema de São Paulo deste ano.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Elles














Tormentas que Perturbam

A eficiente diretora polonesa Malgorzata Szumowska é conhecida por Happy Man (2000), O Desconhecido (2004) e 33 Scenes from Life (2008). Agora encanta com seu poder de sutileza e brutalidade mesclados no bom drama Elles, abordando duas prostitutas que concedem uma entrevista para uma jornalista da revista feminina Elle. Anne é interpretada por Juliette Binoche, em mais uma grande atuação desta magnífica e talentosa diva francesa, esbanjando como sempre sua beleza, sensualidade e carisma. Foi vista recentemente no longa francês A Vida de Outra Mulher (2012), da estreante Sylvie Testud.

A trama é bem conduzida pela cineasta que mostra com vigor o paralelo entre a jornalista em seu cotidiano com uma dupla jornada como mãe de dois adolescentes, um marido distante (Louis-Do de Lenquesaing) num casamento instável, em jornada laboral desabrocha como mulher de fantasias sexuais reprimidas. É incumbida pela pauta para entrevistar duas garotas de programa, logo busca em duas universitárias que vendem o corpo para sobreviver e pagar os estudos. Ao se jogar na pauta encomendada para publicar a reportagem, procura entrevistar não apenas duas prostitutas comuns, mas jovens aparentemente diferentes e com problemas pessoais intrínsecos do ser humano, como a meiga e doce Charlotte, nome de guerra Lola (Anais Demostier) e a polonesa Alicja (Joanna Kulig) recém-chegada a Paris.

Elles é um drama que não cai na caricatura fácil e nem no melodrama, pois Binoche atua com vida e constrói um repórter sensível de carne e osso, sendo frágil e forte paradoxalmente. Num primeiro momento busca a distância, sendo objetiva nas perguntas de uma tarefa quase que ingrata pelo enormes preconceitos na sociedade. Aparenta ser bem-casada e não demonstra quaisquer dificuldades financeiras ou problemas amorosos, sequer de relacionamento com o núcleo familiar, embora haja nos filhos sintomas de rebeldia e uma perda de vínculo, deixando o afeto num segundo plano por contingência profissional.

O filme enfoca um tabu já derrubado há muito tempo no cinema por grandes diretores, sobre a vergonha, o prazer, a humilhação e o sexo pago sem fronteiras misturam-se num erotismo com cenas picantes, porém longe de serem gratuitas. Sem fazer sensacionalismo como ocorreu no controvertido Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci e no polêmico O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, que incendiaram grandes debates destas obras-primas, o longa deixa sua contribuição valiosa para o tema. Szumowska cria uma trama para causar um verdadeiro furor de turbulência na vida da jornalista, com o propósito de abordar com bastante proficiência os dogmas da repressão, através de um enredo criativo onde há cenas reveladoras como no jantar com o marido recebendo os convidados, Anne vê, imaginariamente, sentados à mesa, aqueles homens infiéis em busca do prazer remunerado de uma aventura. Ao abandonar o cerimonial, lança-se como uma pessoa travada atrás da liberdade e da realização das fantasias sufocadas, busca como numa forma mágica em desbloqueá-las numa parceria com o companheiro reprimido.

O drama nos remete para a turbulência passando suavemente, após as arestas serem aparadas para o processo de restabelecimento da vida e o seu reencontro familiar no café da manhã, na bela cena do epílogo. Outra cena marcante é do abraço fraternal da repórter na prostituta, simbolizando o retorno da garota para o seio da família como se fosse alegoricamente o afago naquela mãe desconfiada das atitudes da filha em Paris, mas que busca a verdade mesmo que venha doer.

Eis um filme longe de ser catalogado como moralista, mas adequado como um tema que flui pela sinceridade de uma diretora, ao mostrar com honestidade para os espectadores sua posição definida, abordando os personagens de forma clara e vigorosos na construção, diante de uma proposta libertária e até perigosa, para expulsar os fantasmas escondidos e viabilizar um universo de iguais, através de uma linguagem sem artifícios rebuscados com piruetagens ou invenções desmedidas, num belo drama que se impõe para quem gosta de um cinema sem tabus, ao melhor estilo da velha escola francesa.