quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Até Que a Música Pare

 

Descobertas Familiares

A cineasta Cristiane Oliveira teve reconhecimento nacional com o drama familiar Mulher do Pai (2015), que venceu as premiações de Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Verónica Perrotta) e de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2016. Abordava uma adolescente que precisava cuidar do pai cego, após a morte da avó que os criou como irmãos. Quando o genitor percebe o amadurecimento da filha, surge uma grande intimidade na relação afetiva, mas com a chegada de sua namorada, o ciúme tomará uma proporção enorme na vida deles. O segundo longa-metragem da realizadora gaúcha, A Primeira Morte de Joana, estreou no 51º. International Film Festival of India, em janeiro de 2021 e foi vencedor de 11 prêmios, nos mais de 35 festivais pelos quais passou, inclusive no Festival de Gramado com o Prêmio da Crítica. Foi ambientado, no final do verão de 2007, na cidade de Osório, muito conhecida por seu parque eólico com 75 torres geradoras de energia, o imponente Morro da Borússia e dezenas de lagoas, onde foi criada a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos. Também teve locações nas belas paisagens do município de Santo Antônio da Patrulha, ambos no Rio Grande do Sul. Uma história com uma razoável complexidade que começa a se delinear no seu desenrolar ao retratar as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram trilhar em suas vidas futuras no período da transição entre a infância e a adolescência, com questionamentos e reflexões dos mais variados possíveis.

Até Que a Música Pare é o terceiro longa-metragem da jovem diretora, que assina o roteiro em parceria com Gustavo Galvão, foi selecionado para o Festival do Rio de 2023. Uma coprodução do Brasil com a Itália, na qual além de ser falado em português, também são usados diálogos em Talian, dialeto local da Serra Gaúcha que recentemente foi reconhecido como língua pelo IPHAN. Uma trama aparentemente simples conta a história de Chiara (Cibele Tedesco), uma senhora conservadora e cristã de uma família de descendência italiana. Depois que o último de seus filhos sai do lar para morar sozinho na cidade Caxias do Sul, pontuado como uma referência ao ninho vazio, ela decide acompanhar o marido em uma de suas tantas viagens a trabalho para não ficar só em casa, embora sua filha e a neta sejam as únicas companhias mais próximas que a visitam. O marido circunspecto, Alfredo (Hugo Lorensatti), é um fornecedor de produtos de bar, bodegas e armazéns pelas estradas serranas, por muitos anos, mas de pouca conversa. É a primeira vez que esposa conhece esse outro lado do companheiro nos estabelecimentos e rodovias. Uma descoberta preocupante sobre a vida dele que sempre está na estrada acontece, envolvendo baralhos de cartas vendidos sem nota fiscal e outras falsetas começam a preocupar a idosa estritamente honesta. Reclama que ele bebe vinho com os clientes e que depois segue dirigindo seu veículo antigo. No meio das surpresas surge uma tartaruguinha que colocará a confiança estreita do casal abalada seriamente em um novo desafio de suas vidas deste casamento de mais de 50 anos, sempre juntos.

A diretora foca na protagonista que sofre com a ausência do filho adulto que partiu para novos horizontes, e ainda mais tendo que conviver com o luto da morte de outro filho num acidente de carro. Segue uma rotina de cozinhar, comer, beber e conversar com algumas vizinhas do sítio em que residem nas imediações, tendo como rotina a circulação da imagem da Virgem Maria entre elas. As interações existentes no microcosmo familiar estão cada vez mais fragilizadas e distantes naquela zona rural. Não há pirotecnia, pelo contrário, as situações andam quase se arrastando nas posições de quadro a quadro, sem grandes movimentos da câmera ao captar os problemas do dia a dia. Ver os programas noticiosos de televisão falando da corrupção na política recorrente é a distração da noite, quando há algumas menções tímidas ao bolsonarismo e o conservadorismo reduzido quase beirando ao caricato. Porém, num belo dia festivo, Chiara conversa com o namorado da sobrinha, este faz uma explanação do budismo, e a possibilidade de uma espécie de reencarnação de seres humanos em animais. Explica como funciona a crença na relação particular com Deus e os esclarecimentos dos princípios desta doutrina. Convencida, a personagem central começa a interpretar a pequena tartaruga comprada pelo marido como o filho reencarnado. Ali se estabelece um vínculo muito familiar com o animalzinho, encontrando nele um novo sentido de vida e de interesse capaz de romper com sua vida solitária e monótona.

Do drama familiar, a diretora flerta com a fábula adulta para a superação da morte, além de reinserir socialmente na sociedade uma mulher da terceira idade. As discussões metafísicas e o realismo fantástico do filho que virou um bichinho de estimação pela consciência filosófico-religioso da existência que ocupa um espaço próprio. Estabelece-se um conflito de ideias e crenças, entre o forte catolicismo impregnado na Serra Gaúcha pela cultura italiana contrapondo com o budismo e seus dogmas completamente opostos. O tom de contemplação é a tônica do filme, contribuindo para discussão sobre os parâmetros religiosos. Enquanto a trajetória da protagonista fica cada vez mais eivada pelas incertezas na pequena comunidade em que vive o casal com a realidade da perda e as diversas transformações que cercam os idosos. Os sentidos se constroem numa lógica pueril de um cinema didático, afastando-se da indagação e de um contexto mais profundo, com causas e efeitos imediatos, sempre com respostas prontas, sem a possibilidade da dúvida na próxima cena. Exceto algumas desavenças do casal, na qual ela se recusa a seguir viagem, em seguida tudo volta ao normal na paz celestial. Eis uma narrativa linear, com uma cronologia que transforma a obra em um sentido de ingenuidade e pouco inspirada, diante da ausência de ousadia, dialoga com as telenovelas Global de época, no horário das 18h.

Um elogio à fotografia fascinante com tomadas de imagens na cidade de Antônio Prado (RS), com cores suaves e harmônicas da natureza, embora se torne cansativa pela repetição. Faltaram atritos mais contundentes e a poesia do lugar teve raros espaços na montagem. A neta explicando à avó como se usa o celular, é outra cena didática e sonolenta. Pouco se discute os valores das vendas e as maquiagens contábeis. A luta do filho para colocar uma lápide do irmão, logo some da narrativa, que se ressente de lucidez e um objetivo com uma melhor consequência. Há um vazio na dramaticidade dos personagens condensados no roteiro e suas falhas, transparecendo uma artificialidade latente, como o epílogo pelo estereótipo de soluções de ordem prática e previsíveis após as descobertas do casal. Ainda que careça de amadurecimento, apresenta para reflexão uma ternura dolorida na busca dos detalhes da temática da morte. Um alicerce conservador envolvido pelos fatos numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes, mas que paradoxalmente avança para uma solução fácil com ausência de criatividade nesta realização rasa.

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