Viver e Morrer
O celebrado cineasta espanhol Pedro Almodóvar retorna com O Quarto ao Lado, 24º. longa-metragem de sua vasta filmografia, primeiro totalmente falado em inglês, numa coprodução da Espanha com os EUA, foi ambientado em Nova Iorque. Conquistou de forma inédita para seu país o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. O diretor escreveu o roteiro baseado no livro O Que Você Está Enfrentando, de 2020, da escritora norte-americana Sigrid Nunez, lançado no Brasil em 2021 pela editora Instante. Constrói uma reveladora exposição de exaltação à vida, com pitadas agridoces, para mostrar os dilemas advindos das personagens femininas fortes e o seu direito de escolha como pretexto para um filme de questionamento sobre a eutanásia ou a morte assistida. Uma temática extremamente controversa e polêmica ao envolver a religião, a ética e os ensinamentos filosóficos e fisiológicos. Costura reflexões e um complexo panorama sobre a finitude da existência e o direito de sofrer ou não, diante da doença terminal devastadora com consequências de penúria pela autopiedade.
Almodóvar vinha dando sinais de estar exaurindo o poder de criação na carreira, mas retornou com seu clássico estilo de filmar e o rigor característico formal com Mães Paralelas (2021). Deu uma guinada para o resgate sociopolítico, embora sem se aprofundar no estupro, na maternidade, na trocas de bebês, no luto, na ausência dos pais, na ditadura protagonizada por Franco na Espanha com suas consequências nefastas dos inocentes que perderam suas vidas por um ideal. Na sua penúltima obra, Dor e Glória (2019), retratou uma autoficção intimista própria de um realizador homossexual no ocaso da carreira, alter ego de seu criador, com tintas autobiográficas melancólicas do declínio profissional. Encerrou a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte. Antes vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003). Seguiu o mesmo caminho de vários artistas em crise ou próximos do fim existencial, transformando a trajetória como um legado histórico da arte.
Acompanhado de uma trilha sonora contagiante, O Quarto ao Lado é um dos três maiores filmes do cineasta. Aborda um tema lancinante e denso, o início e o fim de uma vida. Duas jornalistas amigas na juventude que trabalharam juntas numa revista terão seus caminhos cruzados por uma notícia na noite de autógrafos de Ingrid (Julianne Moore) num livro de autoficção. Através de uma outra conhecida, fica sabendo que Martha (Tilda Swinton) virou correspondente de guerra, ambas trilharam carreiras muito bem-sucedidas. Moore e Tilda estão magistrais em seus desempenhos numa entrega singular de perfeita sintonia com a história. As circunstâncias do cotidiano e o trabalho desafiador da correspondente afastam as duas por um bom tempo. Há fortes ressentimentos entre Martha e sua filha, que nunca a perdoou pela ausência constante da mãe, pois sempre se dedicou mais ao trabalho do que conviver com a jovem. A descoberta de uma doença terminal, um câncer na medula, muda completamente a vida da enferma que busca proximidade com as velhas amigas. Nenhuma delas quer ser parceira na empreitada dilacerante de assistir e contribuir com a eutanásia tão desejada. Um obstáculo deve ser vencido para a conclusão do desejo de dar fim ao sofrimento. Ela quer se despedir da vida com humanismo e dignidade plena. Propõe que a velha amiga passe com ela um período numa casa de campo para ter sucesso na ingestão de uma pílula letal que comprou na internet. Não vê mais motivos para continuar numa luta inglória diante do corpo em frangalhos pelo tratamento experimental sem perspectiva. Entre as duas está o velho amigo, o cientista Damian (John Turturro), que dá algumas cutucadas críticas no aquecimento global, a sociedade conservadora, o neoliberalismo, e o crescimento de uma extrema-direita raivosa oriunda de um temido fundamentalismo religioso.
Um enredo que tem a eutanásia como a temática em foco, mas a vida e sua celebração estão acima de qualquer viés doutrinário. A marca registrada do realizador está presente, como notável observador que lança situações escabrosas e assiste o desenrolar dos fragmentos de um dilema universal: a morte, com um esgar sarcástico no canto da boca. Confissões e ânsias na espera do dia que virá melancólico ou de libertação com surpresas e abstrações. Há algumas semelhanças com o controvertido Está Tudo Bem (2021), de François Ozon, sobre um painel doloroso de uma amarga história de um industrial independente de 85 anos de idade, acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado. Cansado da situação crítica, decide que não quer mais continuar a viver sequelado. Pede ajuda à sua filha para através do método do suicídio assistido na Suíça, uma situação recente como do ator Alain Delon que optou pela cápsula com substância mortal, que acabou não se concretizando. Marco Bellocchio não se posicionou em A Bela Que Dorme (2012), deixou nas entrelinhas uma contrariedade implícita, possivelmente por não querer se incomodar com a igreja, completamente oposto a Alejandro Amenábar em Mar Adentro (2004), que aborda diretamente um homem que luta para ter o direito de pôr fim à vida. Michael Haneke em Amor (2012) instiga por destruir dogmas como a defesa de uma eutanásia redentora ao dar um soco no estômago do espectador, mas ao mesmo tempo reflexivo sobre métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional do amor eterno, retirando os véus dos bons costumes, dá um tapa na cara da morte, como fez o personagem central num ato de desabafo pelo desespero. Stéphane Brizé em Uma Primavera com Minha Mãe (2012) fustiga e rasga a alma do espectador numa amostragem sobre a morte e as consequências de seus vínculos e relações decorrentes de uma vida repleta de contratempos e solidão para uma decisão tomada com lucidez pela ausência de perspectiva para o ser humano.
Estabelece algumas relações com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e a eloquência em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o ótimo Fale com Ela (2002); Volver (2006) como a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e a obra-prima Tudo Sobre Minha Mãe (1999). O Quarto ao Lado é uma apologia à vida e sua essência delicada, como um hino das pequenas grandes coisas do sentido da existência. Um poema profundo da transição da vida para a finitude, fruto de uma grande amizade de puro sentimento afetuoso entre duas mulheres empoderadas. Um mergulho nas razões de saborear o cotidiano, como daquela projetada na sinfonia de pássaros na casa de campo em consonância com os flocos de neve de puro êxtase. Eis um drama profundo e inesquecível, que somente um gênio poderia fazer desta forma com uma narrativa de magia e ancestralidade, com um desfecho arrasador de puro envolvimento sensorial que só o cinema proporciona. O olhar atento de um cineasta que ainda tem lucidez de sobras para contar uma relevante história e emocionar o espectador ao focar o universo feminino pelas suas confissões e angústias registradas para purificar a própria alma dos eventuais equívocos do destino. Um olhar altruísta lançado pelos sentimentos das transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano nesta obra-prima, em um dos melhores filmes do ano.
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