quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris

 

O Triângulo

Woody Allen reaparece com Golpe de Sorte em Paris, 50º. longa-metragem do diretor e roteirista, uma mescla de melodrama, suspense e policial tragicômico, onde o azar, a sorte ou o acaso com os contratempos do destino estão presentes e se entrelaçam no cotidiano dos personagens. Afasta-se de sua trajetória de comédias de costumes dramáticas, mas segue fiel no sarcasmo e na sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa carreira, por ser um dos melhores cineastas em atividade no mundo. Ainda que sua conturbada vida pessoal atrapalhe seu destino e o cancelamento que sofreu no território dos EUA não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Este é o primeiro filme do cineasta cujo idioma principal não é o inglês, e o segundo filmado inteiramente na França depois de Meia-Noite em Paris (2011). Pretendia filmar em Paris no verão de 2020, mas foi impedido pela pandemia da Covid-19. Entrevistado pelo ator Alec Baldwin em junho de 2022, mencionou que seu quinquagésimo filme, considerado pelo próprio realizador de 88 anos como um drama semelhante, no qual flerta com Ponto Final: Match Point (2005), provavelmente seria o último.

Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma retomada do inesquecível A Rosa Púrpura do Cairo (1985), talvez seu maior filme, naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do martírio de sua vida sem graça; o romântico-nostálgico Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2018); porém, o penúltimo longa, O Festival do Amor (2022), assim como as realizações anteriores, tenta se aproximar de suas melhores obras ao focar nas perturbações existenciais do escritor em crise de criação, hipocondríaco e neurótico. Reprisava elementos dos filmes anteriores: Roda Gigante (2017), Café Society (2016) e Homem Irracional (2015). Há também obras que ficaram bem aquém de sua capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações e neuroses do dia a dia. Principalmente, depois que começou sua fase europeia, ao filmar em lugares distantes de sua querida Nova Iorque, assim foi em Vicki e Cristina em Barcelona (2008), decepcionante sob todos os aspectos, salvando-se tão somente Penélope Cruz; O Sonho de Cassandra (2007), um pouco melhor, com alguma graça e finesse; Scoop- O Grande Furo (2006) teve certa dose de ironia, mas era muito irregular e sucumbiu.

Golpe de Sorte em Paris apresentar uma história com algum romantismo do mero acaso com pitadas de sorte na glamourosa Cidade Luz, mas depois descamba para situações de ciúmes desvairados, traição, culpa, obsessão e tragédia. Até poderia render bons frutos nestas temáticas das relações humanas e amores frustrados. Acontece que Allen está muito preguiçoso e deu mostras de pouca inspiração. A trama aborda a jovem Fanny (Lou de Laâge) caminhando pela rua completamente despreocupada, depois de sair do trabalho em uma galeria de arte parisiense. Do nada, há o encontro casual com o escritor Alain (Niels Schneider), um antigo colega dos velhos tempos de um colégio onde estudavam na mesma sala de aula. A declaração de amor do rapaz que jamais esqueceu a garota de outrora, deixa ela perturbada pela surpresa da paixão secreta guardada por todos estes anos. O golpe fortuito de sorte acontece no reencontro eventual, pensam eles, ou no que seria o início de um final improvável de uma mulher casada pelas circunstâncias.

Allen imprime pouca consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações de traição com culpa e arrependimento, inspirado aparentemente no best-seller Crime e Castigo, de Dostoiévski. A justiça aleatória é forçada, ao remeter para os hediondos desaparecimentos através de mortes realizadas pelos ditadores da América do Sul. A reviravolta macabra no enxuto roteiro se estabelece quando a mãe da moça (Valérie Lemercier), fanática pelos romances policiais de Simenon, investiga o genro, Jean (Melvil Poupaud), um marido apaixonado e obsessivo, rico, egoísta, e com seus negócios obscuros, começa a desconfiar da esposa pelas suas mudanças de comportamento. Aquele casal ideal com uma vida de futilidades e jantares pomposos vai se esboroando, embora realizados aparentemente em um apartamento de luxo. As caças do esposo na floresta na busca de cervos para serem abatidos é o prenúncio de algo que está para acontecer, embora a felicidade, dos dois, marido e mulher, refletissem uma paz e uma aparente serenidade dos dias como se fossem para sempre. O encantamento da protagonista pelo ex-colega coloca tudo em desarmonia, quando os rápidos encontros clandestinos aos poucos vão se tornando rotineiros. A trama toma contornos perigosos, quando Fanny entende que está vivendo uma vida da qual não gostaria na realidade. Abre margem para os conflitos, perde o controle da situação e a imprevisibilidade passa a ser constante no triângulo amoroso, captada pelas lentes do excelente diretor de fotografia Vittorio Storaro.

Algumas pistas para o espectador são indicadas ao optar pela ficção imaginária do trivial ou pelo realismo doentio, diante da sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional. Eis uma verdadeira ciranda de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações, por menor que sejam, diante de sua verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões, num desdobramento que segue o ritmo de uma narrativa que mistura e recorre à temática de Jean Renoir em A Regra do Jogo (1939), como na caçada na floresta, a tradicional burguesia francesa da época (final da década de 30). Faz de um encontro fortuito em uma sessão de situações cotidianas, para uma transformação da vida numa prisão com ressentimentos em busca da eliminação do rival. O resultado de Golpe de Sorte em Paris tem um desfecho politicamente correto com um ranço de moralismo que beira os bons costumes. Decepciona no todo pela indolência, pois a reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, investigação, culpa e perversidade não tem o impacto que se espera do cineasta, que muitas realizações propiciaram ao cinema na sua essência dos desejos que giravam com os vínculos afetivos diante das desilusões e suas neuroses, como típicas características da sensibilidade criativa do velho mestre.

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