quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Motel Destino

 

Triângulo Amoroso

Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas temáticas são encontradas no bom e instigante Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006), no qual brilha com o drama sobre a classe pobre brasileira, quando a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro para comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada para trás; em O Abismo Prateado (2011), retrata o abandono e a epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), tem um olhar com maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um admirável resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder.

Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, A Vida Invisível (2019), seu filme mais profundo, equilibrado e abrangente, por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como o fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima do diretor. Depois do documentário Marinheiros das Montanhas (2021) e o primeiro filme de ficção filmado em inglês Firebrand (2023), retorna com Motel Destino, com o roteiro assinado por Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias, ambientado em um estabelecimento de beira de estrada no fascinante litoral cearense, através da bela fotografia da francesa Hélène Louvart. Representou o Brasil no Festival de Cannes, mas sem êxito na busca da Palma de Ouro, embora aplaudido pela plateia por 12 minutos. A trama gira em torno de um triângulo com muito erotismo, boas porções de amor e muito sexo apimentado. Heraldo (Iago Xavier) é um rapaz de origem humilde que chega ao motel de beira de estrada, que dá título ao longa-metragem, em fuga do crime organizado, no qual uma facção poderosa está em seu encalço. Busca novos ares e, antes de tudo, sua sobrevivência, ao arrumar emprego ali. Tudo vai mudar naquele local aparentemente tranquilo e de um cotidiano rotineiro de clientes em busca apenas do prazer e fantasias sexuais.

O destino transforma radicalmente a vida do casal dono do estabelecimento, que é administrado pelo temperamental Elias (Fábio Assunção), um homem bruto, contraditório, possessivo e dominador, que tem na sua fogosa esposa Dayana (Nataly Rocha), uma espécie de propriedade. Às vezes, submissa; em outras, parece uma mulher liberal pela rebeldia. O realizador conta a história com certa crueza para mostrar um realismo naquele palco onde as crônicas da realidade brasileira se cruzam e se entrelaçam. Com tintas fortes, retrata o jovem tentando fugir de um ambiente hostil daquela gangue que mata por muito pouco. Logo, a curiosidade de Dayana desperta, e um sentimento de liberdade toma conta de seus sentimentos e desejos frustrados que sempre foram abafados pelo marido. Uma perigosa dança de amor e sedução inicia com um jogo de poder e aspirações mais altos entre ela e o fugitivo se estabelecem. O diretor retoma a temática da opressão feminina, assim como abordou, principalmente, em O Céu de Suely e A Vida Invisível. Outros dois temas recorrentes como a solidão e as perdas, também abordadas em sua filmografia, estão presentes no meio desse cenário para um plano arrojado de independência que começa a ser perpetrado. Eis o intimismo de uma juventude nordestina que tiveram seus sonhos de voos mais altos reprimidos por uma elite conservadora que controla sistematicamente pela ausência de uma consciência equânime de classes. A insubordinação e o conflito soam como elementos para uma saída improvável, mas possível até certo ponto.

O diretor lança tintas fortes e dá uma virada no enxuto roteiro. A traição, a culpa e a fuga estão presentes neste enredo conduzido com astúcia ao ir direto na construção de uma trajetória entrecortada por uma festinha chamada de “baguncinha” na beira de uma piscina, regada por bebidas e churrasco. São os destinos inversos traçados pelo acaso, fruto da intolerância que se entrecruzam com resultados adversos por caprichos hostis arraigados nos ditames truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes. Há uma exposição de fragilidades da mulher vitimada pelo absurdo advindo de hábitos impiedosos ainda incrustados no microcosmo familiar, como da personagem que tenta se reencontrar com um novo amor, embora clandestino. O desfecho trará novas luzes para um futuro dela e os objetivos do rapaz que quer ir embora para São Paulo, que não foram totalmente derrotados, mesmo que a distância possa ser um elemento de frustração. Ainda há uma luz no fim do túnel como um sopro de resgate pela dignidade quando revelada de maneira mesmo convencional pela morte abrupta, no epílogo redentor da liberdade revestido de algum humanismo como ingrediente essencial, após as dores, medos e ansiedades contumazes. A aniquiladora submissão mesclada com a busca da emancipação presente somando-se às dores pretéritas que ficarão para trás.

O cineasta flutua e dialoga com mais de um gênero, indo do noir até a pornochanchada, passando pelo suspense, ainda que seja menor pelo que já realizou. A reflexão é complexa ao passar pelo medo, a submissão, a liberdade, as fantasias, o erotismo, para chegar nas fragilidades dos amantes. O sonho do futuro soa como estímulo para a iniciativa da incômoda realidade autônoma, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças sociais, mas que vão se encaixar e tornar uma relação pouco consistente, já com a presença de um dos personagens como símbolo do passado na ausência transformadora daquela rotina de animais espalhados pelas paredes de pintura surreal dando asas à imaginação naquele aparato pirotécnico. São causas e contrastes por extensão para subir o grau e intensificar o sensorial. O tempo salta para uma outra realidade, quando se afasta do ambiente diário dos sons de gritos, gemidos e sussurros, para ingressar na sugestão da emoção motivadora existencial, diante da sensação de vazio e isolamento. Uma abordagem intensa com uma atmosfera sombria sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, faz com que o drama regido pela tensão entre a violência e o prazer tome contornos para um desfecho duro, mas promissor, após o confinamento dos personagens ecoa como uma alegoria de libertação do enclausuramento.

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