sexta-feira, 23 de maio de 2025

Homem com H

 

Um Astro Rebelde

Homem com H se justifica como uma das melhores realizações que estrearam neste ano em que o cinema brasileiro atinge o ápice meritório de obras indiscutíveis. Fica ao lado de outros dois excelentes documentários indicados ao Oscar de 2024: Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você (2022), de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, e do admirável Meu Nome é Gal (2023), das diretoras Lô Politi e Dandara Ferreira. Eis uma cinebiografia extraordinária sobre a ascendência aos píncaros do estrelato de Ney de Souza Pereira, mais conhecido como Ney Matogrosso, de 83 anos. Retrata a vida e a obra necessária do icônico cantor, intérprete, dançarino, ator, diretor brasileiro, e ex-integrante do revolucionário grupo Secos & Molhados. Uma fascinante história contada com a suntuosidade que marca o biografado nesta trajetória de uma das carreiras mais longevas da música brasileira. Interpretado com intensidade, muitos olhares desafiadores, silhueta delgada, os inconfundíveis trejeitos, nos detalhes da postura, por um exuberante Jesuíta Barbosa que arrasa e atinge o apogeu com o maior papel de sua carreira, ainda que tenha dublado as canções na pele do cantor multifacetado. Atua com uma impressionante dramaturgia, superando as expectativas. Não é fácil encarnar um astro gigante. Demonstrou vigor físico e psicológico impecáveis para uma construção despojada com o gestual marcante e intimista do emblemático artista.

O realizador enfatiza a infância marcada pelo conflito com o pai (Rômulo Braga), um militar rígido que assevera “não criar filho para ser artista”, contrapondo com a bondosa, mas subserviente mãe (Hermila Guedes). Muitos conteúdos emocionais da sua jornada e de sua família são expostos ao espectador. Um filme audacioso e com muita emoção retrata Ney Matogrosso na essência como artista e ser humano, quase um documentário, tal a fidelidade. Com uma trilha sonora excepcional, são mostradas canções de bom gosto como "nunca vi rastro de cobra nem coro de lobisomem, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, porque eu sou é homem", e ainda canta o poema Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes. Bem contextualizadas estão as cenas apimentadas de liberdade sexual, que poderiam chocar os mais conservadores por serem impudicas, mesmo não sendo apelativas, pois da genitália humana há apenas sombras. Há o utópico quartel da Aeronáutica como um ambiente homoerótico sem repressão. Lá, soldados conversam como se estivessem flertando com o desejo proibido naquele meio austero de homens. A epidemia da AIDS é outro ponto colocado com dor e muita tristeza diante das vidas ceifadas. Outra assertiva do longa está na abordagem do regime militar que propiciou a infausta censura na efervescente política brasileira sob o amparo ditatorial do golpe de 1964, com a infame promulgação do AI-5.

O diretor e roteirista Esmir Filho, que tem em sua filmografia Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), Alguma Coisa Assim (2017), Verlust (2020), mostrou muita harmonia e imparcialidade nesta sua realização atual. Longe de ser uma obra chapa-branca, embora tenha sido autorizada. Passou em revista com sutileza a vida pessoal, artística e a todos os caminhos trilhados do renomado artista protagonizado. Logo se percebe a desenvoltura e o senso crítico de Ney como uma característica atrelada na personalidade forte e rebelde de jamais se subordinar ao sistema autoritário. A começar pelo pai opressor, símbolo de um regime tirano; também dos censores do regime de exceção; passando pelos empresários sanguessugas e submetidos bovinamente à censura prévia, sendo responsáveis pela sua saída abrupta do promissor grupo musical Secos & Molhados. As sequências que envolvem o artista que não se deixa sufocar mostram sua disposição e a vontade expressa de buscar novos rumos sem amarras. Um filme para todas as gerações, que humaniza o cantor em momentos difíceis pela árdua superação que resulta no profundo desabrochar pela metamorfose em direção ao renascimento até a glória almejada.

Cabe ressaltar que a música servia de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por um regime antidemocrático que assolava os brasileiros naqueles anos de chumbo, para deixar na tela como reflexão aquele período sombrio, onde as canções mais famosas de sua trajetória são mostradas dentro de um contexto social perigoso para o artista, como bem retrataram os documentários Chico-Artista Brasileiro (2013), de Miguel Faria Jr., e Elis (2015), de Hugo Prata. Cenas de rara beleza, com enquadramentos inspirados, uma cenografia no ponto, uma bela fotografia, boa montagem e o dinâmico roteiro. O diretor prima pela sensibilidade e as sutilezas sugeridas com algumas revelações, explora os relacionamentos que marcaram a vida de seu protagonista. Primeiro, Cazuza (Jullio Reis), aqui em uma espécie de coadjuvante, tipificado pelos exageros, pela perspectiva de um grande amigo, parceiro e mostrado como um grande amor. Aparece em seus momentos mais delicados e tempestuosos, carrega um ingrediente muito importante no enredo. O mesmo acontece com o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone), outro parceiro de mais de uma década num vínculo de muita paixão. Uma abordagem do relacionamento contagiante e fiel até o desfecho pela morte em decorrência do HIV. São passagens que simbolizam as perdas na vida do biografado com delicadeza e uma beleza com essência advinda da dor dilacerante.

São criados bons paralelos entre o homem e o bicho em Homem com H, título oriundo de um clássico imortalizado por Ney, no qual se mostra feroz e terno, desde criança tinha uma estreita relação com a mata, como se fosse parte dela, repleto de instintos, sem se afastar da realidade. Embora o epílogo faça uma homenagem um tanto desnecessária do próprio artista cantando, quase fora do contexto, tendo em vista que o filme já prestou um grande tributo com dedicação e esmero, o resultado é meritório. Transmite uma reflexão para se entender e compreender este astro tão relevante e autêntico, que quebra regras e paradigmas sociais obsoletos e preconceituosos ao criar as suas para uma vida própria com dignidade, quando luta com tenacidade contra os obstáculos. Ousado no corpo despido para ter a tão obsessiva soberania de sua performance e valorizar o espírito libertário de uma alma sem aprisionamento. Um filme para ser degustado com as saborosas melodias da marca brasileira com cenas marcantes de diálogos significativos que não se deixa levar por pieguismos baratos. O resultado não poderia ser melhor para deleite do espectador nesta imersão que beira ao sensorial pelos caminhos das tensões advindas de um período em que se passava de iminente ameaça aos artistas. A história contada faz estes registros na turbulência ditatorial em sincronia. Um passeio pela trajetória de fatos verídicos que marcaram uma existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, sem os estereótipos dos grandes ídolos vistos em várias realizações, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades das celebridades numa narrativa intensa e arrebatadora de um importante legado nesta cinebiografia singular.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Homem Com H" revela um Ney Matogrosso como ele foi e como ele é, sendo um ser andrógeno de grande talento e que o Brasil precisava obter.