quarta-feira, 4 de junho de 2025

Manas

 

Meninas Abusadas

A promissora cineasta Marianna Brennand estreia com grande sucesso em seu primeiro longa-metragem de ficção, Manas. Antes realizou os documentários Francisco Brennand (2012) e Danado de Bom (2016). Com um elenco impecável, retrata com lucidez, sensibilidade e contundência, um tema pouco abordado: o abuso com o tráfico de meninas. Um filme denso, que tem arrancado elogios em festivais estrangeiros, como dos críticos internacionais que o descrevem como visceral, honesto e tecnicamente primoroso, tendo já conquistado mais de 20 prêmios. Em Cannes, a diretora foi premiada com o Women Iá e foi laureada com o Director’s Award na mostra paralela Giornate Degli Autori do Festival de Veneza, e segue acumulando troféus por onde passa. O enxuto roteiro foi assinado por Marcelo Grabowsky e Felipe Sholl; tendo como diretor da fascinante fotografia Pierre de Kerchove, na captura de belas imagens do cotidiano apresentado em planos próximos das ações no mangue ensolarado, também responsável por Retrato de um Certo Oriente (2024), de Marcelo Gomes, e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro. Tanto o cultuado Walter Salles quanto os realizadores franceses Jean Pierre e Luc Dardenne apoiaram a obra, participando como produtores associados deste filme nacional coproduzido com Portugal. Há alguma chance, embora escassa, de representar o Brasil no Oscar de 2026, diante da concorrência dos pesos pesados premiados Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho e O Último Azul (2025), de Gabriel Mascaro.

Essa temática do abuso contra menores já foi anteriormente trabalhada com forte conotação de denúncia no livro de estreia da escritora gaúcha Morgana Kretzmann, Ao Pó, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Estatísticas mostram que 80% dos casos, o agressor está dentro de casa: pai, padrasto, tio, avô, vizinho e amigo próximo, no qual quatro meninas de 13 anos são estupradas no país a cada hora. A história é muito atual destes crimes que tiveram repercussão, quando a ex-ministra de Damares Alves, à época, titular do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, afirmou em 2019 que crianças eram traficadas para o exterior. Porém, não comprovou nada e sequer determinou uma investigação séria. Somente soltou palavras ao vento, e acabou processada pelo Ministério Público Federal, por propagar informações inverídicas e reforçar estigmas sobre a região. Este fato não está inserido no drama, que foi inspirado nos casos de exploração e abuso sexual infantil na Ilha do Marajó, no Pará. Mostra a crueldade que uma adolescente sente na carne ao amadurecer diante de suas idealizações e sonhos ruírem ao ficar refém em um ambientes abusivo e negligente. Ao perceber que o futuro não lhe reserva muitas opções, decide confrontar a tosca engrenagem severa que rege sua família e as mulheres da comunidade.

Tratar o tema com profundidade e ao mesmo tempo expor a perversidade desse tipo de transgressão, sem maniqueísmos, é meritório. Uma dura realidade que precisa ser debatida com mais vigor sobre as meninas ribeirinhas. A realizadora realça que o silêncio não é ficar neutro, é cumplicidade, tendo em vista que a violência sexual contra crianças e adolescentes é um dos crimes mais subnotificados no Brasil. Manas conta uma história através de uma narrativa na qual a garota Marcielle (Jamilli Correa- a atriz estreante entrega uma performance reveladora por uma atuação contagiante), uma jovem de 13 anos que enfrenta a brutalidade dentro do microcosmo familiar e a exploração sexual predominantes em sua aldeia. Está inserida em um meio machista dentro da periferia da comunidade em que mora, numa casa de palafita com o pai, Marcílio (Rômulo Braga), sua mãe, Danielle (Fátima Macedo), e três irmãos. Frequentam com afinco uma igreja, sendo mostrado o avanço exponencial destes templos evangélicos. Sofre com a perda da sua irmã mais velha que partiu para bem longe após arrumar “um homem bom” que circulava pela bacia hidrográfica. Mais experiente com a vida, começa a ter uma percepção da realidade e vê os sonhos sumirem cada vez mais naquele ambiente marcado por dor e sofrimento.

A diretora retrata a pobreza, remetendo para a insegurança alimentar do dia a dia, quando a personagem central se vê obrigada a compartilhar a mesma cama para dormir com o pai incestuoso. A mãe, também abusada na infância, incentiva a menina a vender açaí nas balsas, tão logo chega a puberdade, passando a ser explorada sexualmente pelos tripulantes. Um verdadeiro inferno, pois em casa está desamparada de quem deveria proteger. Os assédios são recorrentes num verdadeiro suplício. Brennand mostra méritos quando aborda sem apelar para cenas explícitas, optando por sugestões que intensificam ainda com mais fervor, sem expor os corpos nus das atrizes adolescentes. Toques e beijos maliciosos são mostrados com sutilezas para demonstrar a implícita importunação sexual imposta, tratada em tom permissivo por assediadores pedófilos próximos à vítima. Só resta salvar a irmã mais nova das taras vindas de dentro do inóspito lar ou dos barqueiros oportunistas com suas masculinidades tóxicas. Confrontar a engrenagem contaminada ao redor e as próprias mulheres submissas da comunidade não é tarefa fácil, até surgir a policial Aretha (Dira Paes), personagem inspirada em duas pessoas reais: o delegado Rodrigo Amorim e a ativista Marie Henriqueta, no combate à exploração sexual e o tráfico infantil na Ilha do Marajó.

Eis um fabuloso drama familiar e social com um enredo aparentemente simples e uma narrativa consistente, sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com grande profundidade. Às vezes, poética, como o caderno que a protagonista faz para a irmã, o livro da escola, e os ensaios para a apresentação de dança; em outras, melancólica, que remete à tortura psicológica num intenso clímax de suspense agonizante. A mãe grávida novamente, e sua filha que vende peixe na balsa para conseguir dinheiro, simbologia da prostituição iminente, não escondem a vontade de ir embora dali como fruto do desespero. A colheita e o respectivo processamento do açaí contrastam com o aprendizado da espingarda para a caça, arma que irá impactar no epílogo pelo desfecho inesperado, na esperança de uma adolescência um pouco mais feliz e saudável em meio aos igarapés amazônicos. A irracionalidade está na cultura repleta de pessoas pedófilas, doentias, de personalidades carregadas de instintos animalescos brutais ao ultrapassar a o marco da civilidade por uma série de delitos que testam a própria dignidade humana. Um mergulho relevante nas questões sociais de abusos com o consequente tráfico infantil. Manas é uma reflexão do contexto de um painel de medo, miséria e o assíduo terror psicológico pela barbárie que torna o enredo amplamente complexo na essência do cinema. Pontua com amplitude as relações dos fragmentos da dura ruptura social de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados pela estupidez criminosa.

Nenhum comentário: