segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (O Segundo Ato)

 

Inquietações Futuras

Um dos mais aguardados lançamentos do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano foi o interessante O Segundo Ato, com direção do prolífico parisiense Quentin Dupieux, de 50 anos, chamado de Mr. Oizo, também conhecido pelo trabalho como produtor e artista de música eletrônica. Estreou na direção de cinema em 2001, com o média-metragem Non-Film (2007); no mesmo ano, dirigiu seu primeiro longa-metragem, Steak (2007). Depois disso, realizou várias obras, tais como Wrong (2012), Os Maus Policiais (2013), Reality (2014), Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo (2019), Mandibules (2020), Incredible but True (2022) e Fumar Causa Tosse (2022). O diretor e roteirista tem sido um nome constante em festivais como os de Cannes, Veneza, Berlim, Roterdã, Locarno e Sundance. O longa-metragem teve a honraria de fazer a abertura do Festival de Cannes deste ano e foi visto com entusiasmo pela crítica internacional e pelo público presente.

Uma comédia com esgar de sorriso irônico e um sarcasmo no ponto certo de muita ironia fina com requintes de abordagem psicológica preocupante para um presente iminente e um futuro cada vez mais próximo. O Segundo Ato é um filme dentro de outro, com uma proposta pouco usual de um jogo duplicado, dividido em quatro partes. A ação se abre com um longo plano-sequência num travelling em que conversam David (Louis Garrel), que quer apresentar Florence (Léa Seydoux) para o melhor amigo Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão caminhando ao encontro da moça que está interessadíssima no protagonista, mas que não é correspondida. Suplica ao interlocutor que jogue um charme sobre a moça e a seduza. Este teme entrar numa fria, faz vários questionamentos sobre o que há de errado na tal garota para que haja este estranho pedido. Situações de preconceitos e homofobias são lançadas em tela para uma abordagem colocada em xeque sobre os rótulos da feiura, transgênero e os problemas neurológicos. O machismo desborda num ideário complexo numa situação de relação amorosa que vem à tona e só será revelada no desfecho para apresentar a cara da hipocrisia reinante num contexto ainda conservador pela ideologia da supremacia do macho alfa em relação aos padrões de beleza vigorantes na sociedade de consumo.

Na outra cena, a jovem está irrequieta porque pretende apresentar seu amado, aquele que julga ser o homem de sua vida, ao seu pai, Guillaume (Vincent Lindon). Em outra cena, o ansioso garçom figurante treme freneticamente ao ter que fazer uma ponta do filme, num ritual que irá se repetir. Todos são atores que estão fazendo o mesmo filme, e logo começa a se encaixar no roteiro as contradições e as peças do tabuleiro de xadrez. O realizador, com sutilezas, vai dando sugestões e mostrando uma dura realidade na qual o futuro já está presente. Ali é revelado que a direção de um filme foi realizado 100% por inteligência artificial, com dispensa de um quadro técnico humano de apoio que logo irá se tornar obsoleto ao testar ferramentas novas. Surgirão as imagens e os diálogos neste encontro controvertido, inverossímil acima de tudo, entre uma encenação com uma realidade complexa naquele enfadonho set de quatro personagens em um restaurante no meio do nada. Desprovido de emoção e com presenças físicas sucumbindo e despencando no artificialismo da produção e montagem, como nas duas cenas em sequência, em que atores perguntam ao suposto diretor sobre os efeitos positivos e negativos do resultado da realização. Só que, do outro lado, as respostas são protótipas de um robô sem alma e sem vida. Literalmente padronizadas e advindas de uma máquina sem coração pela ausência de humanismo. Causa um mal-estar, tanto nos personagens como no espectador, a eloquência vazia pela frieza.

As causas e efeitos estão presentes como situações ainda não bem elaboradas e sem perspectiva de cicatrização, que proliferam numa realidade acompanhada do contrassenso árido que promete o futuro sombrio. Aos poucos, torna-se complicado distinguir a ficção da realidade, como na rapidez da encenação entre os atores e os diálogos deles sobre suas amarguras na vida pessoal. Por isto, o cineasta habilmente utiliza seu sentido provocativo na viagem melancólica e silenciosa, beirando ao entediante, no travelling buscando uma luz no fim do túnel como um sopro quase que de desespero e angústia de um passado que se despede, acenando para um ponto de interrogação sobre os efeitos maléficos ou não da inteligência artificial que veio para ficar. Um filme construído com um propósito que surpreende pelo seu desenrolar preciso e direto ao ponto diante das dúvidas decorrentes na raiz da perversão das atrocidades que poderão restar de um futuro dúbio e carregado de dúvidas universais de outrora. O cineasta utiliza recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito de alguns personagens quase que em transe, como do garçom italiano, para vencerem o medo na busca da verdade e das revelações que se acumulam, se entrelaçam e se espelham na magia do cinema.

Dupieux subverte os vários clichês que viraram moda e desafia o tom policialesco do recorrente politicamente correto, como na cena do beijo roubado e a ameaça de denúncia da atriz para acabar com a carreira do colega. Adota um estilo marcado pela naturalidade e pelo cômico, com cutucadas ferinas no absurdo do falso moralismo em nome de uma liberdade pertinente, mas utilizada de forma excessiva que deteriora as recorrentes causas justas de um repertório massificante. Um mergulho prazeroso nos chiliques existenciais da profissão dos artistas com suas idiossincrasias, amarguras, insatisfações, delírios, além das vaidades brotando e se esfacelando rapidamente numa narrativa consistente deste abismo de virtuoses estelares, extremadas em alguns casos; contidas em outras. Mesmo que a comédia não seja tão profunda, e sem grandes pretensões estilísticas, a narrativa é eficiente e o assunto causa desconforto, embora o roteiro seja linear e multifacetado em seu desenrolar, com elipses certeiras. O Segundo Ato remete para os bons tempos do movimento artístico revolucionário e contestatório da Nouvelle Vague nas décadas de 1950 e 1960. A dignidade está em xeque, embora seja questionada pelos defensores da inteligência artificial e seu campo multidisciplinar que abrange tecnologias e permitem uma variedade de funções, incluindo a capacidade de ver e entender. Há um fardo insustentável e pesado que tomará grandes dimensões numa atmosfera soturna diante de fatos que geram dor para uma reflexão sobre a irracionalidade neste painel admirável, magnificamente contextualizado na essência da sétima arte.

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