quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui

 

Sombras da Ditadura

O aclamado cineasta brasileiro Walter Salles, numa produção dos EUA, França e Grã-Bretanha, através do cineasta e produtor Francis Ford Copolla, que em 1979, adquiriu os direitos legais para adaptar o best-seller de Jack Kerouac On The Road, de 1957, foi levado pela primeira vez às telas do cinema com o título Na Estrada (2012), sua última grande realização. Recriou de forma elegante a saga da contracultura dos jovens perdidos no mundo do pós-guerra, deixando nítidos os reflexos violentos do período da Grande Depressão norte-americana de 1929. Antes, dirigiu Linha de Passe (2008), Diários de Motocicleta (2003), Abril Despedaçado (2001) e Central do Brasil (1998), até então sua obra absoluta. Agora, Salles dá seu maior salto na carreira e atinge o ápice com Ainda Estou Aqui, uma adaptação do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, pelos roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega, ao narrar a emocionante saga da mãe do escritor, Eunice Paiva, durante a ditadura militar no Brasil, ambientada em 1970. A realização coproduzida com a França foi indicada para representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2025.

A trama conta a história que se passa na casa da família do engenheiro, importante político e ex-deputado federal Rubens (Selton Mello- sempre sóbrio e irrepreensível) e sua esposa, Eunice (Fernanda Torres- em atuação antológica, certamente numa das maiores já vistas no cinema nacional, carrega o filme com uma desenvoltura soberba), uma mulher destemida, gigante na altivez, empoderada e com muita fibra, na companhia dos cinco filhos do casal. Aparentemente era uma pessoa comum, que teve de mudar drasticamente seu comportamento logo após o desaparecimento do marido, levado da residência para supostamente prestar alguns esclarecimentos sobre o sequestro do embaixador suíço no auge do regime de exceção, acusado de conspirar contra o governo. Salles conduz a trama com segurança e energia, deixando transparecer sempre sobra de fôlego com um estilo próprio de uma insustentável leveza narrativa para golpear o espectador no âmago de seu imaginário. Uma obra com ausência de violência explícita e com uma perspicaz criação de terror psicológico, sem abusar ou desbordar para o melodrama maniqueísta que pudesse levar facilmente às lágrimas. Pode levar a náuseas pelo impacto auditivo e sensitivo dos gritos dos presos sendo torturados, mas com sutileza e finesse, que só um criativo artesão poderia conseguir tal resultado.

Tudo é fruto de uma boa estrutura para uma dramaticidade equilibrada e sem sensacionalismos, mas com um apreciável tecnicismo para evitar os arroubos de grandes cenários, numa história contada com sensibilidade e uma profunda visão sobre a ditadura sobrepondo os efeitos da liberdade democrática. Há um domínio excelente dos planos e contraplanos de cenas, aproximando sempre a câmera nos rostos dos personagens para captar toda a emoção e a dor dilacerante, tanto da esposa como dos filhos, mas sem utilizar métodos apelativos baratos. Forçada a abandonar sua rotina de dona de casa, a resiliente mãe e mulher se transforma em uma ativista dos direitos humanos e dos indígenas, lutando pela verdade sobre o paradeiro do companheiro ao enfrentar as consequências brutais da repressão dos duros anos de chumbo. O filme não se resume em retratar somente um drama familiar, mas principalmente o impacto do regime militar na vida de milhares de famílias brasileiras na mesma situação, com uma distinção especial para a força feminina na espinhosa e terrível empreitada da resistência diante das questões de perdas, mas sem abstrair a coragem e a dignidade.

Salles revisita um dos períodos mais sombrios da história brasileira, mergulhando nos fétidos porões escuros e abjetos de uma época a ser lembrada para mostrar as feridas abertas de fantasmas que ainda pululam como lembranças nefastas. Um tributo à força da magnitude de uma mulher poderosa pela sua energia sólida para manter a família de pé, mesmo com sorrisos e poses emblemáticos pela ironia, sem nunca se abater ou vitimizar por todas as adversidades atrozes de um regime sanguinário. Um hino à democracia na luta pelos direitos esfacelados, tendo como simbologia o desaparecimento para sempre de um opositor ao sistema truculento com resultados nefandos. Uma viagem existencial recheada de dor, melancolia e rumos irrefreados de um universo incerto pelos dogmas com normas totalitárias preocupadas com os ditames estabelecidos por uma sociedade avessa aos diálogos civilizados, sendo sempre conveniente lembrar as atrocidades contra um cidadão sequestrado por agentes do governo, sem deixar vestígios e provas.

Eunice é determinada e quer manter o bem-estar de seus filhos ao buscar respostas que sempre vieram com evasivas. Tenta subverter as angústias da ausência incômoda antecedida pelos momentos de alegria e felicidade do microcosmo familiar nas belas praias carioca ensolaradas. Os namoros das filhas, o cachorrinho achado pelo filho menor, tudo regado com brincadeiras nostálgicas de um pai amoroso naquela casa sempre aberta, com o sol iluminando e motivando um cotidiano idílico, depois aniquilado pela força bruta, na qual as janelas e portas se fecharão para sempre, deixando a escuridão claustrofóbica, metáfora da tirania, invadir e se perpetuar como um elemento intimidador. O novo momento retornará no desfecho, agora em São Paulo, mas os acontecimentos abordados irão voltar à tona, mesmo que dezenas de anos depois para apontar uma resposta sem elucidação, exceto uma minguada vitória amarga e contraditória como da obtenção da certidão de óbito. É preciso continuar vivendo como um lema protocolar, sem extrair jamais a tristeza, pois a crueldade de sobreviver sem saber o que aconteceu se faz necessário para uma mãe acuada, perseguida e torturada psicologicamente, sem direito algum de se despedir. Há uma pergunta de um filho sobre qual é a hora de enterrar uma pessoa na própria memória? Cada um tem no imaginário uma solução pragmática, mas desprovida de uma realidade absoluta.

Embora haja uma linha autoral em sua estética, há similitude em conteúdo e proposta com o instigante Marighella (2019), de Wagner Moura, 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de escravos, sobre as violentas ações e reações impostas em 1964; o extraordinário Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias; e o sequestro do embaixador dos EUA no filme O Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro do jornalista Fernando Gabeira. Ainda Estou Aqui indica as atrocidades marcantes no enredo, com o objetivo de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política, ao colocar em lados opostos membros da família brasileira. Contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda decorre do devastador estigma golpista. Cartas e recordações estão presentes em um cenário sinistro, embora a família tenha se multiplicado ao longo da história, deixando o abismo do vazio em segundo plano para seguir em frente, mas a agonia e o emocional fragilizado dos filhos e mãe estarão sempre juntos. A protagonista retorna no desfecho, já com a saúde debilitada pelo Mal de Alzheimer, na qual Fernanda Montenegro entra em cena, sem dizer uma palavra, mas se expressa pelo olhar, para coexistir seus últimos dias com os filhos adultos e alguns netos, num recorte da própria memória. Um marcante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário, sob o manto do autoritarismo nesta obra-prima de Walter Salles.

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