Ética e Vingança
O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade, discussões sobre a censura e restrições em mais uma notável reflexão da política. O perturbador drama social mesclado com comédia, Foi Apenas Um Acidente é uma coprodução com a França, país que representa no Oscar de 2026, e Luxemburgo. Também foi indicado em quatro categorias no Globo de Ouro (Melhor Filme de Drama, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Filme de Língua Não Inglesa). Dirigido e escrito por Jafar Panahi, que conseguiu driblar mais uma vez a ordem superior impeditiva de circular livremente no seu território, afrontando líderes políticos e religiosos. Considerado inimigo da República dos Aiatolás pelas declarações feitas no exterior pela liberdade dos artistas. Com seu filme anterior, Sem Ursos (2022), ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2022, onde não pôde comparecer para a premiação. Ex-assistente e discípulo do mestre conterrâneo Abbas Kiarostami, realizador dos magistrais Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999). Já esteve duas vezes preso, a primeira, em 2010, durante 86 dias, depois por sete meses, entre 2022 e 2023, foi libertado após uma greve de fome. Proibido de deixar o país por 15 anos, até que, em maio de 2024 pôde viajar a Cannes para apresentar Foi Apenas Um Acidente, sendo o grande vencedor da Palma de Ouro em Cannes neste ano. Teve de pagar uma fiança para adquirir sua liberdade, após cumprir uma pena autoritária de 14 anos de prisão domiciliar e a proibição de realizar filmes no Irã.
Somente outros dois grandes cineastas como Robert Altman e Michelangelo Antonioni venceram a tríplice coroa na história do cinema. Agora, Panahi se igualou a eles, ao ganhar o Leão de Ouro e o Prêmio Fipresci no Festival de Veneza de 2000 com O Círculo (2000), no qual já demonstrava segurança de elenco, enredo forte e uma grande dose de dramaticidade, sem se deixar amedrontar pela tirania. Com Táxi Teerã (2015), venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim daquele ano, em que pouco demonstrava ser o realizador um prisioneiro ao filmar clandestinamente, limitado no espaço de um carro-cárcere com janelas e espelhos retrovisores para acompanhar os personagens nas suas intimidades devassadas. Como se fosse um jogo de espelhos das personagens comuns com as atrizes convidadas, segue esta linha de forma marcante, também apontado por alguns críticos como inspiração em Kiarostami no filme Dez (2002). Realizou ainda em forma de manifesto como libelo pela liberdade, soando como um brado dolorido pela prisão domiciliar decorrente da expressa ordem de não poder filmar: Isto Não é Um Filme (2011) e Cortinas Fechadas (2013). Tem também em sua filmografia os ótimos O Balão Branco (1995) e Três Faces (2018), seu antepenúltimo filme, que aborda uma atriz famosa que recebe um vídeo intrigante de uma garota implorando por ajuda para escapar de sua família conservadora.
Em seu último longa, a trama gira em torno de um grupo de cidadãos que organiza uma vingança contra um homem que acreditam ser o torturador. Tudo começa com o mecânico Vanid (Vahid Mobasseri) que foi aprisionado pelas autoridades iranianas, interrogado de olhos vendados e torturado sem escrúpulos. Em um dia qualquer, anos após os traumas do seu passado, entra na oficina um motorista, Eghbal (Ebrahim Azizi), com problemas no seu carro, que pela artimanha do destino mudará por completo a vida dos envolvidos. Seria coincidentemente o algoz que tinha uma perna mecânica, era manco, por isso chamado de Perna de Pau, do qual as vítimas ainda ouvem o som nos seus pesadelos, a voz e o cheiro do suor. Há dúvidas, porque não há certeza definitiva de sua identidade, por isto o mecânico vacila ao levá-lo para uma cova para enterrá-lo vivo. Vai até outra vítima, o livreiro para buscar a confirmação, mas que o incentiva a esquecer o assunto, e não querer fazer justiça com as próprias mãos como revanchismo, invocando a ética e os valores que os detentores do regime desconhecem. Tenta a ajuda com uma fotógrafa (Mariam Afshari) que teria sido torturada pelo mesmo carrasco, mas que agora está trabalhando para uma cerimônia de casamento. A noiva, por acaso, também foi martirizada, e sua presença causa um rebuliço com efeito insólito. Todos acabam se juntando para andar numa van como se fosse um tour pelas ruas de Teerã, com o torturador sequestrado no interior do veículo. O protagonista quer se vingar do suposto agente do Estado que o traumatizou emocional e fisicamente. Mais um se integra na saga do grupo, o raivoso quarto elemento. Panahi agrega tensão com comicidade, gera dúvidas e fica sempre o questionamento de um possível erro sobre o opressor de outrora. Há humor, embora o horror no drama esteja latente nesta nova filmagem clandestina.
O prólogo dá indício de uma situação calma com um pai, uma mãe grávida, e a filha conversando animadamente num carro que abruptamente atropela um cachorro, sendo seu destino ocultado de forma alegórica. Logo tudo irá se alterar, diante de um roteiro enxuto que mostra uma sensível trajetória humana de movimento pela tentativa da suposta calmaria pelas complexidades humanas utilizadas com fino humor para aos poucos ir colocando as atrocidades sofridas pelos opositores do regime. A vingança e a justiça como forma de perdão tácito sobre quem são os torturadores de uma barbárie, no recorte de um período macabro, estão em questionamento. Uma mescla de corrupção sub-reptícia de vários setores do sistema vigente predominado pelo fanatismo fundamentalista com extorsões de quem deveria zelar pelo poder público, como nos casos de pedidos de propinas retratadas em duas cenas, de situações caóticas e improváveis. Impressiona a falta de liberdade de expressão, na qual não pode haver críticas ao regime que cerceia temas relacionados ao governo vigente. Um cenário mostrado com equidade que consegue subverter para denunciar problemas sociais e nutrir o estado educativo ao lembrar para que não se repita através de um retrato da rebeldia dos torturados que sofreram consequências da violência de uma disputa política desigual. Ficaram as marcas da tragédia com cicatrizes abertas das feridas de quem optou em não aceitar o autoritarismo, vistas como pessoas errantes que ainda assim sobreviveram com medo e pavor das consequências advindas do poder dos aiatolás.
Eis um grito contra a opressão pela beleza e a função primordial da sétima arte que está inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, o que torna um drama mesclado com humor, passa pela ação, transita pelo suspense, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre a justiça se sobrepondo à vingança numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, de um sistema ultrapassado e sem liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante de um marginalizado cineasta de oposição. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder metafórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas no país. Usa sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força singular do personagem central em seu conteúdo de oprimido contestador para um relato eloquente pelo direito da ampla justiça, da clemência para enaltecer o nascimento de uma criança como uma luz para o futuro daquele agressor a serviço da repressão, que também é uma vítima do sistema. Foi Apenas Um Acidente é mais um dos grandes filmes do cineasta, construído em torno da temática sobre a vil vingança diante do ódio do regime autocrático para eliminar o adversário num círculo vicioso infindável no qual urge a dignidade da vida preservada. Um final em aberto nesta iluminada obra de humanismo, delicadeza, moral, justiça e ética.

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