quinta-feira, 27 de novembro de 2025

A Quem Eu Pertenço

 

Mãe e Filhos

Um filme que teve boa recepção do público e da crítica no Festival do Rio de 2024, mas que só agora chega comercialmente nas salas de cinema, foi o instigante A Quem Eu Pertenço, da diretora e roteirista tunisiana Meryam Joobeur, radicada em Montreal, que também fez parte da competição principal do Festival de Berlim 2024. Conhecida principalmente pelo curta Brotherhood, lançado em 2018, tendo indicação ao Oscar de melhor curta-metragem de live-action. O longa-metragem de estreia é uma coprodução de vários países, incluindo Tunísia, França e Canadá, Noruega, Qatar e Arábia Saudita, que tem como material promocional as perguntas “a quem pertence a minha vida?”, “Quando retiramos as camadas de crença, religião, política ou nacionalidade, o que sobra de nós?”. Conta uma dilacerante história de uma mãe angustiada com a partida dos dois filhos mais velhos para uma suposta guerra. Aïcha (Salha Nasraoui- em atuação antológica) é uma típica matriarca consumida pela dor, resiliência e uma amargura, que vive numa pequena fazenda de criação de ovelhas, em um vilarejo no norte da Tunísia, com o marido, Brahim (Mohamed Hassine Grayaa), um homem machista e bronco, que joga toda culpa na esposa, e o filho caçula, Adam (Rayen Mechergui), que acredita ter os irmãos indo trabalhar na Itália, além de Bilal (Adam Bessa), um policial que é filho do primeiro casamento de Aïcha.

A trama se divide em três capítulos. Os dois primeiros focam nas situações familiares e a rotina com o tempo passando, a ausência dos filhos parecendo normalizar a aparente paz e serenidade, menos para a mãe, que vai envelhecendo e sendo consumida pela espera em vão, mas mantém o trabalho duro diário, até que um dos filhos, Mehdi (Malek Mechergui), retorna inesperadamente e anuncia que seu irmão morrera. Vem junto com ele uma mulher grávida e misteriosa (Dea Liane), mencionada como sua esposa, apesar de não ser muçulmana, usa niqab roxo, um véu islâmico que só deixa descobertos os lindos olhos azuis. Aquela presença fantasmagórica indica para um segredo sombrio que ameaça a aldeia. O amor materno e a busca pela verdade colocam em dúvidas a genitora sensorial, de crenças fortes, mas uma brava mãe leoa na defesa da prole, que assume a condição de administradora do lar para lutar com uma dignidade comovedora. O terceiro capítulo é aterrador, além de explorar a dor da perda em uma situação diferenciada e cativante, retrata o lado perigoso e assustador do grupo terrorista ISIS com uma falsa expectativa de que acabaria com o constante estado de guerra interno e com os abusos belicistas pela ideologia fundamentalista. Na realidade, as mulheres perderam todos seus direitos, como nas chocantes cenas reveladoras sobre a simbólica grávida misteriosa.

A brilhante narrativa é uma mescla magnífica de gêneros sem exageros melodramáticos, no qual os silêncios preponderam para dar mais legitimidade à essência do cinema em seu todo. Transita exemplarmente do drama familiar para o suspense, depois para o realismo fantástico, até mergulhar no horror desencadeado pelo terrorismo sem precedentes, mantendo a plateia constantemente atenta. O jovem casal vive escondido na casa dos fundos da família, enquanto isto, acontecimentos estranhos surgem como a morte de uma ovelha, fazendeiros vizinhos desaparecendo, em constantes situações sobrenaturais empíricas. Não há sinais de respostas fáceis ou os didatismos recorrentes carregados de clichês. A virada de roteiro é espetacular numa abordagem corajosa do filme com muita eficiência e um clímax psicológico atordoante. Tudo é colocado com precisão por esta realizadora promissora, numa construção que soa como uma verdadeira aula de cinema na essência mais genuína ao surpreender em cada cena. O enredo vai se dissipando com o desenrolar da história, enquanto a mãe observa os fatos recorrentes pela iminência dos temidos agentes de um grupo extremado que matam, executam e tocam o terror para espalhar o medo. Querem um regime autoritário que coage sem dó e nem piedade pelo exercício de uma mentalidade e suas tendências sanguinárias.

O filme não se presta para contar apenas uma situação, mas para entrelaçar em três capítulos contundentes como se percebe do seu desfecho arrasador e trágico com tintas catárticas. Perturba pela grande revelação de um segredo que irá ser descoberto com astúcia e uma ironia do destino. Longe de filigranas de emoções superficiais, faz o espectador refletir nesta elegante construção de personagens com suas características inerentes ao deixar um minguado sopro de esperança germinada para o futuro. Uma admirável obra a ser vista por todos que desejam compreender a história de um país africano pobre, mas esperançoso e resistente, com cenas de uma fascinante fotografia contrapondo com um cenário de assombrosa crueldade, na qual a dignidade se esvai em alguns seres humanos sem alma, muitas vezes anônimos, corroborado pela cativante trilha sonora que não é invasiva e dá o tom certo em cada entrada. É contagiante no âmago cinematográfico pela intensidade dos fatos intercalados que desfilam numa atmosfera criada em torno de uma mentalidade de ideias e pensamentos sobre costumes ultrapassados.

Um contexto de intolerância sobre o que é capaz de se fazer com um povo com seus problemas conjunturais do passado que refletem no presente e apontam para um futuro de poucas perspectivas nesta aprofundada denúncia pelo cinema. São marcantes a sensibilidade e a delicadeza feminina de focar a chaga maligna enraizada no seio de um universo dominado pelos homens deste tema universal sobre a condição da mulher simbolizada pela mãe resistente e a moça grávida, sem pieguismos baratos. Os paradigmas humanos são pontuais, no qual faz com que as cenas tenham o caráter da resiliência naquela bucólica paisagem realçada em seus contrastes pela limitação dos horizontes femininos, na interpretação caolha de um universo estritamente machista escancarado com todas as mazelas implantadas pela opressão e violência deixadas pelas cicatrizes e crueldades de mutilações, em todos os sentidos, tanto física como emocional, retratados no drama. Com garra, dignidade e muita dor no coração e na alma, a protagonista é uma verdadeira lição de vida. Eis uma reflexão pontual, que faz com que as cenas tenham o caráter da luta monumental daquela criatura que nunca se verga. O espectador não fica alheio e é convidado de maneira sutil a ter um sentimento de preocupação e dor nesta temática humanitária. Um olhar lançado pelas transformações emocionais na construção psicológica nesta impactante obra-prima. A Quem Eu Pertenço deverá estar nas listas dos 10 melhores do ano.

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