terça-feira, 25 de maio de 2021

Nomadland

Viagem Existencial

Nomadland é o longa-metragem que vem consagrar definitivamente Chloé Zhao ao ser premiada com o Oscar e o Globo de Ouro na categoria de Melhor Filme, que a fez se tornar também a segunda mulher oscarizada com a estatueta de Melhor Direção. Além de diretora, roteirista, produtora e editora, esta jovem chinesa de 39 anos, radicada nos EUA, ganhou ainda o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o People's Choice Award no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Conhecida por seus trabalhos independentes: Songs My Brothers Taught Me (2015), Domando o Destino (2017), e o inédito Os Eternos (2021). Desta vez, a dobradinha foi feita com a atriz americana Frances McDormand, de 63 anos, casada com o cineasta Joel Coen, desde 1984, que atingiu a marca de três estatuetas do Oscar, tendo antes sido laureada em Fargo (1996) e Três Anúncios Para um Crime (2017). Então, a equipe fez as malas e colocou o pé na estrada para viajar por cinco estados, durante várias semanas, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, como dizia o saudoso cineasta mais influente do efervescente Cinema Novo brasileiro, Glauber Rocha.

A trama gira em torno de Fern (McDormand- excelente atuação ao carregar o filme nas costas), uma mulher de 60 anos, que entra numa velha van, mas bem equipada, com tudo dentro para atender o básico da dignidade humana. Parte para uma longa trajetória na esperança de viver fora da sociedade convencional, como uma moderna nômade, após o colapso econômico que abalou a cidade industrial de Empire, na zona rural de Nevada, nos Estados Unidos, diante da desativação de uma grande fábrica que a fez perder o emprego. Além de McDormand e David Strathairn, que interpreta um idoso interessado em Fern, todos os demais personagens são atores amadores selecionados entre os nômades reais. A protagonista é vítima da Grande Recessão de 2008 que impactou as vidas de milhares de pessoas por uma recessão poucas vezes vista. Ela carrega também o luto do marido falecido, mas tenta superar esta que foi a maior perda de sua vida. Na sua obstinada jornada, consegue empregos temporários, tem contratempos com o veículo, mas constrói algumas amizades e descobertas, como revelações de criaturas amarguradas e solitárias na saga pelos caminhos que irá desbravar. Entre tantas personagens reais, está Linda May, assim como outros nômades da terceira idade que trabalharam durante décadas para ter um padrão de vida confortável da classe média, porém com um câncer invasivo e dúvidas de que teria alguns anos para descansar, conta suas angústias. Já o mentor Bob Wells, outro personagem que interpreta sua vida, embora ainda abalado pelo suicídio do filho, fala do sistema de Seguridade Social de seu país, que dá uma aposentadoria mensal modesta de US$ 500 e da opção de escolher entre comer, ir ao médico ou ter uma casa.

A realização é uma mescla de ficção e realidade, rotulada por alguns críticos como um filme híbrido, que por vezes torna-se um documentário, diante dos relatos tristes de demissão, divórcio, dívidas e perdas por hipotecas. Baseado no livro-reportagem da jornalista Jessica Bruder, publicado em 2017 nos EUA, que conta histórias verdadeiras e amargas, porém a protagonista é ficcional que está cercada por autênticos nômades encontrados no mundo real, e em fuga distópica com um olhar distante, sem as benesses do lazer. São indicativos de um futuro sombrio com a precarização do trabalho e uma aposentadoria cada vez mais improvável. Inquietações e atrocidades são reveladas oriundas de uma crise econômica devastadora, porém que solidificará uma rede de solidariedade entre aquelas criaturas em fuga da realidade.

A diretora demonstra que ao abandonar o ideal da classe média, os personagens solitários também recuperam a reminiscência da juventude que mitificou os hippies. Ajudam-se na montagem dos veículos, na busca de empregos de freelancer e lidar com os abusos dos empregadores. A comunidade on-line cria blogs para trocar experiências das viagens sem destino e suas andanças pelas estradas. Não perdem o prazer de dançar e propiciar encontros como um poema de amor à vida e exaltação à natureza, embora a decrepitude esteja estampada na fisionomia de muitos e a proximidade da morte esteja espreitando algumas vidas já condenadas. Uma boa reflexão sobre as amizades sendo fortalecidas neste epílogo de suspiro existencial de interessantes diálogos através de uma peregrinação na qual todos seguem, tendo de lidar com as fragilidades da vida para valorizar cada momento pelas lentes de uma fotografia majestosa de belas imagens. Uma abordagem de cunho sensorial, com uma trilha sonora não invasiva que dá o tom certeiro na melodia, para adequar simbolicamente uma volta ao passado pelo itinerário do presente, sem um futuro definido pelas poucas luzes no horizonte.

Nomadland é um admirável filme sombrio, mas no qual a esperança se confunde com a melancolia, por alguns instantes, dando sinais de aflição e consolos nos sentimentos da convivência dos personagens mergulhados na solidão. Em outros momentos, cede lugar para edificar, tanto pela adversidade, como pela dor da perda, como por escassos instantes de prazer daqueles seres buscando o reconhecimento da dignidade para serem valorizados. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da jornada espiritual de aventuras nos questionamentos da vida neste retrato honesto sobre uma parcela da população norte-americana no enfrentamento dos perigos diários decorrentes do frio congelante e a pobreza iminente. Uma imersão de magia na naturalidade proporcionada pela cineasta neste legítimo drama road movie, que mostra com tintas consistentes o pós- crise de 2008 e o número expressivo de pessoas que irão se abrigar em automóveis como suas casas, sintetizado no desabafo da personagem central. Estão lá mais por falta de opção do que por uma prazerosa escolha. Eis um retrato sensível, maduro e quase que poético advindo dos núcleos familiares decorrentes das fragilidades do isolamento social que dá lugar para o convívio e a fraternidade naquele espaço desalentador de ilusória harmonia coletiva.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Nomadland" é um filme universal sobre o nosso tempo atual, onde a sociedade não tem mais para onde se esconder desse sistema capitalista, a não ser estourar a bolha e colocar o pé na estrada.