Conto de Fadas Agridoce
A comédia romântica com ingredientes de pitadas de sarcasmo e alguma dosagem de bom humor Anora foi a vencedora do Festival de Cannes no ano passado. Voltou a ser a dona da noite no Oscar deste ano, abocanhando cinco estatuetas: melhor filme, direção, atriz, roteiro original e montagem. Escrita e dirigida por Sean Baker, que tem em sua filmografia realizações menores, de pouca expressão, tais como Red Rocket (2021), Projeto Flórida (2017) e Uma Estranha Amizade (2012). Possivelmente nem o próprio cineasta aguardava tanto sucesso em tão pouco tempo, sendo oscarizado discutivelmente como Melhor Diretor, para ele que sempre foi um realizador menor. Também a atriz Mikey Madison no papel da protagonista que empresta o nome ao título do longa-metragem, mas que se apresenta como Ani. Certamente não esperava ser recompensada com a láurea de Melhor Atriz no Oscar, superando as favoritas Fernanda Torres, sem qualquer patriotada, foi disparadamente superior as suas concorrentes pela atuação antológica em Ainda Estou Aqui; e Demi Moore, sempre candidata e nunca leva nada, embora desta vez não dê para se dizer que houve uma grande injustiça, pois sua interpretação em A Substância foi apenas protocolar.
A trama foca numa profissional do sexo norte-americana, que dança e faz companhia a homens carentes de afeto e luxúria, inspirada em Uma Linda Mulher (1990), sendo estrelado por Julia Roberts e Richard Gere. Que diferença! A atuação de Madison está de acordo com sua personagem jovial e ingênua, não decepciona, mas também não encanta. Mostra boa naturalidade ao interpretar a garota de programa que trabalha numa boate com muitas luzes neon, xingamentos, disputas com as colegas, na busca de clientes de um mundo com realismo, na região do Brooklyn, nos Estados Unidos. “Eu estou sempre feliz”, diz Anora, como uma voz ressonante de pura ironia ou de uma alienação completa no mundo em que vive. Ali há muita solidão, pouca compreensão e um total distanciamento dos membros familiares em completa distopia. Como num conto de fadas onde a Cinderela atinge o ápice da felicidade ao tirar um prêmio monumental que a torna independente ao conhecer um príncipe encantado rico que se apaixona pela menina pobre. O encontro ocasional irá mudar sua vida em uma noite normal como outras quaisquer, mas que jamais será repetida. A garota descobre que pode ter sido premiada pelo destino ingrato até aquele momento. Acredita que encontrou o seu verdadeiro amor e que não precisará mais passar pelas humilhações na casa noturna.
O enredo anda rápido e logo o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan (Mark Eidelshtein), em férias nos EUA, é o cliente que ela encontrou por acaso. Depois de muito sexo, apenas com intervalos para o garoto jogar videogame, ele acaba pedindo ela em casamento. Tudo muito acelerado, como a vida do casal e os impulsos do cotidiano. Mas nada é para sempre nos melodramas de realizadores que precisam achar saídas imediatas. O matrimônio sofre uma ameaça contundente dos pais do rapaz que entram em cena para desaprovar a relação. Um dos motivos alegados seria o fato da atual nora ter um passado nada compatível para os padrões rígidos de uma Rússia austera. Truculentos capangas são enviados à terra do Tio Sam para acabar com a lua de mel dos pombinhos. Cenas previsíveis se sucedendo, até que um armênio, por mais uma ironia do destino, consegue colocar em ordem a bagunça festiva dos jovens apaixonados. Uma alegoria das brigas entre os norte-americanos com os russos, mas tudo de maneira folclórica, de pouca inspiração, por vezes descambando para uma comédia pastelão. Primeiro com a fuga, e depois na busca incessante do herdeiro arrependido pelos serviços sexuais proporcionados ou coagido pelos pais para se separar. Nem ele sabe a razão.
O longa-metragem retrata no desenrolar uma tempestade diante da realidade opressora de uma família ligada ao tráfico de armas, pela desigualdade social. Mas como ponto positivo do roteiro está o completo descaso com os jovens, que salva o filme da derrocada. A ausência de carinho e amor são marcantes na vida do rapaz, com uma idade mental de uma criança ou de um pré-adolescente. Paga para ter prazer e um pouco de atenção, tendo em vista que seus pais separados só se uniram para desmanchar seus raros momentos de felicidade. A garota sequer sabe onde estão seus pais, num diálogo revelador com o futuro marido. Menciona apenas uma irmã que tem por hábito tirar seus namorados. Não há vínculos afetivos familiares, deixando estampada uma solidão devastadora numa típica juventude da geração Z. Deixa transparecer uma total falta de objetivo, tendo seus anseios e o futuro voltados para o universo da internet e redes sociais como salvaguardas, divide-se entre o mundo virtual e o real. Ele parece um zumbi à procura de emoção e afeto constantemente. Ela simboliza uma Cinderela deslumbrada num ambiente de luxo e ostentação.
Em Anora tudo soa como um mero discurso vazio, que não convence diante de temas relevantes e nada singelos. Faltou se debruçar nas importantes situações que acabam se perdendo no emaranhado de incoerências com diálogos minguados de aprofundamento ao ficar distante de um realismo de nossa sociedade. A relação amorosa fora do desnível social também não tem um mínimo de profundeza, que logo desaparece do cenário. O desfecho está mais para um prenúncio de novelão recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês hollywoodianos, como a intervenção da decidida mãe, a submissão do inseguro pai no contexto de uma narrativa com pouca magnitude. Eis uma comédia romântica que flutua para o melodrama agridoce, com mais sal e menos açúcar. Abusa dos estereótipos ao abordar temáticas num mosaico arcaico de múltiplos temas. Perde a oportunidade de mergulhar em questões essenciais para reflexão do espectador. Há ausência de uma criação efetiva para um epílogo simplório, no qual há uma flagrante preocupação com a bilheteria como na redenção do símbolo da truculência. Uma obra comum e de pouca elevação neste misto de ingenuidade com esperteza apresentado no qual a previsibilidade de forma direta e didática torna-se um trunfo menor pela falta de inspiração e muita superficialidade.
Um comentário:
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024, "Anora" é uma comédia extremamente humana, da qual ficamos de frente perante uma situação absurda, porém, muito mais próxima de nossa realidade do que a gente imagina.
Postar um comentário