quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Emilia Pérez

 

Melodrama Insosso

O diretor francês Jacques Audiard ganhou a Palma de Ouro em Cannes com o drama social Dheepan- O Refúgio (2015), no qual fez uma abordagem seca do multiculturalismo e da triste sina dos imigrantes na velha Europa invadida por causa dos conflitos internos de países do terceiro mundo dominados pelas execráveis ditaduras. Ambientou sua trama num condomínio de classe baixa da periferia dominado pelos traficantes numa gris e sorumbática Paris, contrapondo com as belezas naturais dos glamourosos cafés, bistrôs e do romantismo da Cidade Luz. São situações clássicas retratadas na imigração por um olhar atento do cineasta que tem em sua filmografia os razoáveis Nos Meus Lábios (2001), De Tanto Bater o Meu Coração Parou (2005) e Paris, 13º. Distrito (2021). Com o perturbador O Profeta (2009), trouxe uma visão profunda dos grupos mafiosos e da criminalidade escancarada dos guetos islâmicos que fervilhavam naquele ano, bem como o preconceito com o mundo árabe. No instigante Ferrugem e Osso (2012), focou no corpo mutilado de uma adestradora de orcas para aprofundar uma reflexão sobre as lutas de uma selvagem violência de classes sociais tensionadas pelos estigmas entre pares excluídos da sociedade.

Agora retorna com o polêmico Emilia Pérez, eivado de declarações racistas e xenófobos da atriz principal entre 2020 e 2021 no antigo Twitter. Todos os diálogos e canções são em espanhol, numa coprodução da França com o México, mesmo assim representa os franceses na disputa pelo Oscar deste ano. O filme tem uma direção dispersiva e com um minguado interesse cultural das mazelas mexicanas onde é ambientado. Incrivelmente conseguiu 13 indicações: Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, direção, atriz (Karla Sofía Gascón- primeira atriz trans indicada ao Oscar), atriz coadjuvante (Zoe Saldaña), roteiro adaptado, fotografia, edição, maquiagem, som, música original e canção original (El Mal e Mi Camino). Talvez leve alguns prêmios técnicos na melhor das hipóteses. Nas principais categorias é quase que impossível desbancar o brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, por ser infinitamente inferior nas categorias de Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e de melhor atriz em que Fernanda Torres tem uma atuação antológica.

Audiard pega carona na onda dos musicais e segue a mesma estética arriscada que optou Todd Phillips em Coringa Coringa: Delírio a Dois (2024). Gênero que teve seus momentos de glória nos tempos de Hollywood, dos cultuados Sinfonia de Paris (1951, de Vincente Minnelli, Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, e Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), de Jacques Demy. Recentemente, o jovem realizador Damien Chazelle também se aventurou com La La Land: Cantando Estações, (2016), num clímax de romantismo exacerbado e um banho de nostalgia em um tributo aos velhos clássicos musicais, mas pobre em conteúdo. A realização tem uma estrutura de lógica fácil e lucrativa voltada para o streaming. Bem diferente do competente cineasta canadense Denis Villeneuve que explorou os limites amorais do ser humano no estupendo drama policial Sicário- Terra de Ninguém (2015), que abordou a triste e dolorosa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA ao preparar uma audaciosa operação para deter o grande líder de um cartel de drogas mexicano.

A trama do diretor, que também é um dos roteiristas, mostra Rita (Zoe Saldaña), uma advogada qualificada e insatisfeita com sua carreira em uma firma que encobre grandes crimes. Encontra uma boa oportunidade de mudar de vida, pois entende que está desperdiçando seu talento. Quando recebe uma proposta de um poderoso chefe de um cartel, Manitas, que deseja se aposentar, sumir, e deixar para trás sua identidade criminosa. Porém, o plano é muito mais complexo do que se imagina. Além de fugir das autoridades, pretende se metamorfosear em uma nova pessoa, ou seja, numa mulher que possivelmente sonhou ser e que terá o nome de Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón). A ajuda da profissional é importante nesse processo de transformação para que ele liberte-se de sua vida pregressa num plano de alto risco e, talvez, fazer o bem ou, pelo menos, tentar se redimir das atrocidades causadas. O realizador faz um retrato pouco elucidativo sobre os imigrantes diante da burocracia e da xenofobia estampadas para se regularizarem, no qual foi magnificamente enfatizado em Dheepan- O Refúgio.

O filme não teve boa recepção no México por tratar de assuntos como feminicídio, violência policial, pessoas desaparecidas, e principalmente o narcotráfico, de maneira artificial. A bizarrice começa quando o magnata do tráfico pede para que a advogada sustente a hipótese de suicídio. Segue com Rita andando pela cidade e cantarolando numa atmosfera sem consistência em que as pessoas ficam ouvindo atônitas: “Amemos as mulheres, perdoemos os homens, abracemos a miséria”, enquanto há um coro de faxineiras que responde em versos: “a derrota da má-fé” e "o triunfo do amor". A ironia e a revolta contra a hipocrisia soam como um mero mergulho num discurso vazio, que não convence ninguém diante de temas profundos e nada singelos. O diretor sequer se debruça na importante situação da troca de sexo. Também o feminicídio é tratado com uma distância sem elevação, que em nada contribui para um tema tão crucial e recorrente de nossos dias atuais em que as mulheres são vítimas diariamente. Outra temática valiosa é a dos desaparecidos, que também se perde no emaranhado de assuntos ao ficar distante da realidade. A relação amorosa no mesmo gênero também não tem um mínimo de aprofundamento, deixa transparecer apenas alguns olhares furtivos que logo desaparecem do cenário.

Manitas quer se tornar Emilia Pérez para não deixar pistas para os rivais ou deseja ser mesmo uma mulher? Eis uma questão que envolve pessoas transgênero. Fica sem resposta e é tratada com absoluto descaso, embora a canção com a palavra vaginoplastia sugira a segunda opção. Já sua esposa, Jessi (Selena Gomez), imagina que está viúva e protegida na Suíça com os dois filhos pequenos. De volta ao México, os dois personagens principais são surpreendidos por uma mãe aflita que procura o filho. A virada do confuso roteiro está mais para um novelão mexicano previsível recheado de situações corriqueiras dos surrados clichês de Hollywood, como a explosão do carro e a guarda judicial das pobres crianças, do que uma obra com magnitude. Existem momentos mais solenes, e outros nos quais o espectador fica em dúvida se é pra rir ou silenciar. Emília Pérez é um melodrama musical insosso que abusa dos estereótipos ao abordar diversos temas num mosaico anacrônico. Desperdiça a oportunidade de aprofundar questões essenciais, deixando a violência brutal do narcotráfico com milhares de mortos passar em branco em tom musical, sem uma resolução contundente, com ausência de realismo e um desfecho de solução simplória com ausência de criatividade nesta realização rasa.

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