segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

A Semente do Fruto Sagrado

 

Regime Paranoico

O festejado iraniano Mohammad Rasoulof é o diretor da pequena obra-prima Não Há Mal Algum (2020), vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. Não pôde receber o prêmio porque estava proibido de sair para o exterior. Em 2010, foi preso, enquanto trabalhava ao lado do cineasta conterrâneo Jafar Panahi, sendo condenado a um ano de detenção e impedido de deixar seu país desde 2017. Foi detido novamente em 2022 ao criticar as autoridades que reprimiram os manifestantes na cidade da Abadan no trágico desabamento de um edifício com dezena de mortos. Mesmo com todas as dificuldades de filmar em sua terra natal, realizou este instigante drama sociopolítico em coprodução com a Alemanha e a República Tcheca para abordar uma temática pouco explorada, que é o perfil dos verdugos que aplicam a pena de morte. Retratava a escolha de quatro homens para serem os carrascos, divididos em quatro episódios. Não importava a decisão tomada, pois iria transformar os aspectos psicológicos dos executores e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles. Direta ou indiretamente, uma história fragmentada e retumbante na complexidade da essência cinematográfica esmiuçada para uma aprofundada reflexão aterradora dos grotescos julgamentos dos não alinhados ao regime.

Rasoulof dirigiu outros importantes títulos: O Crepúsculo (2003), A Ilha de Ferro (2005), e Adeus (2011), no qual levou o prêmio de melhor diretor no Um Certo Olhar do Festival de Cannes. É dele também Manuscritos Não Queimam (2013) e A Man of Integrity (2017), obra que foi premiada como melhor filme da seção Um Certo Olhar. O realizador, que também assina o roteiro, retoma o tema das execuções sumárias com os conflitos e dramas familiares em A Semente do Fruto Sagrado, título que remete a uma figueira na qual as raízes crescem e sufocam outras árvores, em uma magnífica metáfora do regime teocrático ditatorial imposto no Irã. Recebeu o prêmio especial do júri em Cannes, foi laureado pela Federação Internacional de Críticos, premiado pelo público no Festival de San Sebastian, na Espanha, e apontado nos EUA como melhor título internacional, além de ser indicado pela Alemanha para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Pega o gancho da turbulência política de Teerã desencadeada pela morte da jovem Mahsa Amini, detida pela Polícia da Moralidade em 13 de setembro de 2022, pelo simples fato de deixar alguns fios de cabelos mechados aparecerem, com imagens reais captadas por celulares na época. Houve muitos protestos na capital iraniana com a bandeira feminista de “Mulheres, Vida e Liberdade” diante da estúpida declaração governamental de que a moça morrera de infarto, embora a causa tenha sido o bárbaro espancamento por infringir o código de vestimenta feminina ao usar incorretamente o hijab, o véu islâmico que cobre a cabeça, o pescoço e as orelhas das mulheres muçulmanas.

A filmagem foi clandestina entre dezembro de 2023 e março de 2024 no Teerã com financiamento alemão. O diretor e as atrizes que interpretaram as filhas fugiram do Irã numa saga de 28 dias de percalços até a Alemanha. O casal de atores que interpretou os pais ainda está no país. A trama aborda Iman (Missagh Zareh), um juiz de instrução promovido recentemente no Tribunal Revolucionário apenas para assinar as sentenças de morte sem conhecer ou ler os motivos das penas dos acusados. Não poderia questionar o processo sumário, para em troca receber um polpudo salário, apartamento luxuoso para a família composta por sua esposa submissa Najmeh (Soheila Golestani), a filha universitária Rezvan (Mahsa Rostami) e a jovem adolescente Sana (Setareh Naleki), porém agravado pela presença de Sadaf (Niousha Akhshi), uma estudante agredida pela polícia que ali estava escondida. O protagonista, que inicialmente mostrava alguma resistência ao novo cargo para qual fora promovido, aos poucos adere aos ensinamentos e normas ditadas pelo regime autoritário que segue rigorosamente os preceitos religiosos. Inexiste espaço para questionamentos sobre alguma perseguição política contrária ao conjunto de leis baseadas no Alcorão. Enfrenta uma batalha no microcosmo familiar contra as próprias filhas que o questionam, e depois, com a anuência da mãe que muda sua posição. Elas se sentem mais fortes e acabam se encorajando para lutar contra o pai paranoico e visivelmente com esgotamento mental, na pele do juiz executor que sofre pressão em sua nova posição, na qual estão os eventos que o cercam e o empurram para um estado de vigilância constante.

A implosão familiar e os esfacelamentos das relações transformam a dinâmica harmônica em uma crise doentia sem precedentes, que se estabelecem quando a arma pessoal some misteriosamente. Segredos serão revelados com efeitos corrosivos pela mania de perseguição do personagem central. A desconfiança recai sobre todos os membros do núcleo da residência. Iman adota regras rígidas e medidas extremas que rapidamente minam os laços afetivos já fragilizados. Levará todos ao limite de um delírio de loucura, fuga e insubordinação com impactos psicológicos que deixam sequelas existenciais com resultados devastadores diante de algumas escolhas. Principalmente na metamorfose de um pai em uma figura patética pela sordidez. A narrativa começa ao melhor estilo dos realizadores iranianos, entretanto, se esvazia do meio do filme em diante, quando opta por outros caminhos que pouco dialogam com o prólogo. Dá uma guinada e parte para uma intensa perseguição na estrada, que remete, sem brilho, ao suspense O Encurralado (1971), de Steven Spielberg. No epílogo, tenta reeditar o clímax inesperado ao buscar subsídios no clássico labiríntico de terror O Iluminado (1980), de Stanley Kublick, transportando o público a uma sequência de sem saída, porém bem frustrante, com resultado pouco inspirado e nada impactante.

A Semente do Fruto Sagrado é um drama que flutua do documentário para o suspense ao retratar a claustrofóbica vida de uma família dentro de uma residência com portas e janelas fechadas. Há alguma semelhança estética com o extraordinário drama brasileiro Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, embora seja inferior. Mesmo assim, apesar das derrapadas, não deixa de ser uma obra importante de denúncia das arbitrariedades praticadas principalmente contra as mulheres. Explora com méritos as questões de opressão política, religiosa, moral, e um judiciário parcial, sem legitimidade, no Irã contemporâneo. Cabe ressaltar o papel atuante das redes sociais em revelar verdades ocultas. Conecta o choque de gerações exposto, na qual os mais jovens estão na batalha pela liberdade em um regime repressivo numa atmosfera asfixiante que reflete o aprisionamento físico e emocional dos personagens. A violência toma o lugar da disciplina e a brutalidade supera a busca de diálogos esclarecedores. O registro meritório do realizador está nos efeitos do rosto de uma filha no interrogatório, feito por um suposto amigo no papel de um burocrata indiferente ao medo da menina ameaçada. As distorções são transformadas em rituais permitidos por leis sem direito a ampla defesa. Distante de maniqueísmos e superficialidades banais, reforça a agressividade desde o começo pelo sistema dentro de um contexto essencialmente autoritário com métodos evidentes de despotismo sem limites que contrariam os direitos humanos universais de uma civilização.