O cineasta e roteirista pernambucano Marcelo Gomes fez sucesso já no seu primeiro longa-metragem, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), sendo premiado na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes de 2005. Realizou outros sete longas que foram premiados em alguns dos principais festivais do mundo, como Veneza e Berlim, no qual participou da competição em 2017 com Joaquim. Também teve reconhecimento com Viajo Porque Preciso, Volto porque Te Amo (2009), e Paloma (2022), o melhor filme do Festival do Rio em 2022. Neste ano, acabou de conquistar o prêmio de Melhor Filme no Festival de Huelva, na Espanha, com Retrato de Um Certo Oriente, numa coprodução do Brasil com a Itália e o Líbano. O drama foi adaptado livremente do romance de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum, vencedor do Prêmio Jabuti de 1989, roteirizado pelo diretor em parceria com Maria Camargo. A história é muito atual e permanece constantemente na mídia internacional, como o bombardeio recente de Israel em Beirute para intimidar o grupo Hezbollah, embora conte a saga de imigrantes que fugiram do inferno da guerra no Líbano, em 1949, para enfrentar os desafios apresentados na floresta amazônica brasileira com suas peculiaridades bem características.
Com um elenco sólido de libaneses escalados nos papéis dos personagens principais, quase todos os diálogos do filme são em árabe, a trama gira em torno dos irmãos católicos Emilie (Wafa'a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) que decidem deixar sua terra natal em uma paisagem árida e montanhosa ameaçada pela guerra, em busca de uma vida melhor. No navio, a irmã conhece e se apaixona por Omar (Charbel Kamel), um comerciante adepto da religião muçulmana que se baseia nos ensinamentos do profeta Maomé. As desavenças entre os dois já começam em alto-mar, quando o irmão tem uma crise de ciúmes, influenciado pelas discordâncias religiosas, e acusa os seguidores do livro sagrado Alcorão de responsáveis pelas mortes de seus pais. Tenta separar o casal de namorados de qualquer maneira, culminando em uma briga violenta dos desafetos. Emir é gravemente ferido com um disparo de arma de fogo durante o conflito, o que acarreta numa forçada interrupção da longa jornada da viagem. Acabam entrando em uma aldeia indígena para buscar socorro imediato. Lá, todos os esforços do cacique são colocados em prática através de ervas e chás para salvar o rapaz convalescente.
Uma realização com um enredo aparentemente simples em uma narrativa dramática consistente sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com boa profundidade. Às vezes, poética; em outras, dolorosa e sentimental. Aponta para os relacionamentos da paixão, da memória dos antepassados e do preconceito religioso. Revela as complexas relações familiares e culturais dos imigrantes em um país totalmente desconhecido e repleto de desafios. Vai da racionalidade à irracionalidade de pessoas simples em uma aventura com tintas de epopeia. Enfrentam uma série de desafios para testar a própria dignidade humana numa arriscada travessia a bordo de um navio superlotado, depois de ter fugido da crueldade de uma nação em chamas pelos atritos políticos e sociais. O diretor desglamouriza a obra ao optar pela instigante fotografia em preto e branco de Pierre De Kerchove, e evita as cores de um país convulsionado em situação caótica, bem como ao chegar em terras brasileiras com a imensidão de águas, pois há muito pouco de beleza a ser mostrada. Depois da recuperação do irmão, continuam seu propósito de chegar a Manaus, tendo a irmã reatando a relação amorosa com o comerciante responsável pela quase perda de seu familiar próximo. O casamento é marcado de imediato, embora haja um clima de consequências trágicas e duradouras perdurando na sombria atmosfera.
A obra traz um mergulho relevante nas questões de identidade e o choque cultural em uma abordagem que se concentra em sentimentos e experiências internas, e pelas reflexões sobre as complexidades da imigração e da construção de um novo rumo de vida na busca da harmonia. Tem um contexto fundamental para criar um clímax de medo da miséria recorrente e do terror psicológico pela barbárie das lutas sanguinárias, que torna o enredo amplamente complexo na essência do cinema, quando o cunhado com sua flor branca na mão assiste ao casamento escondido, com um olhar atônito e longe, antes de tomar uma decisão inusitada. O espectador se choca com as circunstâncias, embora surpreendidos no epílogo com elementos de intolerância religiosa extremada associada à culpa e ao arrependimento, na ânsia de resgatar a dignidade diante de uma imensa solidão. Os efeitos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada no destino almejado. A satisfação da cerimônia religiosa com seu futuro marido é como se fosse um troféu emblemático, ao melhor estilo das grandes sagas pela busca de um novo caminho para trazer vida digna, pela ótica dos próprios libaneses.
O filme é bem construído pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado, embora pontue com boa amplitude ao ser retratada com eficácia nas relações dos fragmentos da dura ruptura social do país de origem. Fica para trás os episódios sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade pelas dificuldades inerentes. O desfecho da transformação traz reflexos pelas mudanças comportamentais de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados. A carismática protagonista não demonstra fragilidades, mesmo sendo alegoricamente uma representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma nova mulher em uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Não é um simples relato sobre a jornada de dois irmãos libaneses que decidem imigrar em busca de uma vida melhor. É uma história com elementos humanos fortes, que revela diversos aspectos sobre os seres humanos que decidem sair escondidos pela coragem e resiliência diante do caos para seguir em frente. Eis uma admirável reflexão sobre a estupidez humana da guerra pela irracionalidade bestial de seus autores, dando também uma alfinetada certeira e enfática nas disputas religiosas acirradas, para quem aprecia relatos imparciais neste digno painel da sobrevivência como um sopro de esperança fora do Oriente Médio.
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