quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Os Sonhos de Pepe- Movimento 2052

 

Defesa do Ecossistema

O diretor e roteirista uruguaio Pablo Trobo realizou Os Sonhos de Pepe, o primeiro capítulo de uma trilogia. Ele teve contato com José Alberto "Pepe" Mujica Cordano enquanto trabalhava como cinegrafista na campanha ao ser eleito presidente do Uruguai de 2010 a 2015. Narrado em off, num tom sombrio de lembranças do passado alternando para momentos entediados e pessimistas com o destino das fragilidades do planeta. As peripécias e assombros que passam o povo e o seu futuro são carregados pela subjetividade ao colocar num relato sincero e destemido. Há a inserção de vários discursos e pensamentos deste político e agricultor descendente de bascos, ateu, casado desde os anos 70 com a também ex-militante Lucía Topolansky. Após deixar a presidência, foi senador de março de 2015 até agosto de 2018, em um importante papel no combate à ditadura militar no seu país (1973-1985).  São enumerados vários fatos com imagens para provocar o espectador a tomar uma posição sobre os acontecimentos históricos quer marcaram sua passagem pelo governo, sua visão sobre a humanidade com aspectos, circunstâncias e posições ideológicas, embora utópicas na maioria, para uma reflexão de nossa sociedade atual e o futuro dos seres humanos.

O documentário tem uma visão de exaltação ufanista com uma trilha sonora invasiva, evitando situações comprometedoras ou polêmica do protagonista, como a participação na guerrilha, do episódio conhecido como Tomada de Pando, ocorrido em 8 de outubro de 1969, quando o grupo guerrilheiro Tupamaros tomou a delegacia de polícia, o quartel do corpo de bombeiros, a central telefônica e vários bancos da cidade de Pando, situada a cerca de 32 quilômetros da capital uruguaia. Há uma passagem rápida em que Mujica comenta sem ressentimentos seus 12 anos na prisão, de onde só saiu no final da ditadura, em 1985. O longa-metragem acompanha o ex-presidente em suas viagens pelo mundo e seus deveres protocolares, como Tóquio, Rio de Janeiro, Nova Iorque, entre tantas outras. Ressalta sua visão progressista pautada pela sustentabilidade e pela justiça social em meio a um cenário de crise climática, uma posição divergente da predominante que sustenta e incentiva o modelo predatório e consumista da humanidade. O cineasta ressalta um "Pepe" existencialista que pergunta no início do filme: Qual o sentido vida? Preocupado com o aquecimento global, diz que a natureza já está se rebelando. A voz forte e as preocupações deste líder nato são as advertências sérias sobre o que está por vir, embora o meio ambiente já esteja dando sinais e alertando para o futuro do nosso planeta.

Enquanto acompanha sua rotina diplomática por um mundo mais igualitário, mais consciente e mais verde, Mujica vive do que planta em sua chácara nos arredores de Montevidéu, onde também aprendeu com os japoneses a cultivar flores. Doa 90% de seu salário para instituições sociais de caridade, sem abrir mão de dirigir seu velho Fusca azul-celeste de 1987 para ir ao trabalho ou se locomover na região, tendo rejeitado morar na residência oficial do Palácio de Suárez. Há méritos da realização quando é lançado um olhar de preocupação e angústia com as iminentes fragilidades de nosso universo corroído por um avanço sem controle e galopante dos descartes de materiais, principalmente tecnológicos, que poderão desconstruir e levar ao retrocesso de uma vida mais saudável. Ainda que sejam desejos fantasiosos, revela como a filosofia do ex-mandatário diante de um planeta a caminho do colapso climático com reflexões sobre como alterar esse panorama que urge em mudanças drásticas. Em novembro deste ano, houve discussões das cúpulas no G20 Social, o U20 e o Aliança Global que movimentaram o Rio de Janeiro no encontro das principais economias mundiais, pela primeira vez realizado no Brasil. A meta era aumentar o poder de países em desenvolvimento em instituições de governança global, como a ONU e a Organização Mundial do Comércio.

Os Sonhos de Pepe visa duas abordagens, sendo que a primeira retrata uma liderança inspiradora e consciente, prestes a completar 90 anos, que segue lutando por um mundo melhor não somente para si, mas para as gerações futuras, de um homem fiel aos seus princípios. A segunda tem como objetivo cativar o público com um sentimento de dignidade com o intuito de afastar o ódio nas diferenças políticas em tempos tão difíceis, deixando a esperança prosperar em um planeta mais sustentável. Os meandros intrínsecos e extrínsecos que norteiam o destino da humanidade são retratados pelo cineasta, sensível e preocupado com o mundo, que se sentiu tocado pelas preocupações do personagem central quando o conheceu em 2009. “O discurso do Mujica fugia da situação política daquela eleição. Ele sonhava com um mundo parecido com o que eu queria ver. Então, decidi acompanhá-lo e documentar tudo que fosse importante”, revela Trobo, em entrevista para o Festival do Rio 2024. “O subtítulo original, Movimento 2052, se refere ao ano em que especialistas preveem que o planeta chegará a um ponto sem volta se não reduzirmos drasticamente o consumo de recursos naturais”, conclui o documentarista.

Em 2018, o documentário El Pepe, Uma Vida Suprema, do cultuado cineasta sérvio Emir Kusturica, que o considerava “o último herói da política”, foi agraciado no Festival de Veneza com o Prêmio Enrico Fulchignoni do Conselho Internacional de Cinema e Televisão da Unesco. Já o filme de Trobo tem boas intenções, mas descamba para o discurso com um viés chapa branca numa identificação pelo engajamento. Ainda assim, um relato significativo e relevante por seu aspecto no foco ao ecossistema convalescente que verga para uma hecatombe perigosa. Fica o alerta para a necessária mudança de atitude climática para o futuro através de uma vitrine para o discurso de Mujica que assevera: “Em um planeta a caminho do colapso climático, onde a humanidade persegue um modelo predatório de desenvolvimento e consumo”. Acende e mexe com o espectador quando alerta “O tempo corre depressa e não é possível comprá-lo”. Sua posição forte soa como denúncia sobre o que é jogado nos rios e mares, como o descarte de roupas defeituosas da elite no Deserto de Atacama, virando um lixo que será duradouro por muitos anos. Sem ser definitivo e nem conclusivo, embora caia em recorrentes obviedades, o documentário apresenta a vida, o trabalho, as ideias e as convicções filosóficas e políticas de um líder de esquerda questionador. Um libelo da agressão à natureza que já está se revoltando como resposta de punição à humanidade que vai ao encontro dos desmandos e irracionalidades do homem.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Retrato de Um Certo Oriente

  

As Intolerâncias

O cineasta e roteirista pernambucano Marcelo Gomes fez sucesso já no seu primeiro longa-metragem, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), sendo premiado na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes de 2005. Realizou outros sete longas que foram premiados em alguns dos principais festivais do mundo, como Veneza e Berlim, no qual participou da competição em 2017 com Joaquim. Também teve reconhecimento com Viajo Porque Preciso, Volto porque Te Amo (2009), e Paloma (2022), o melhor filme do Festival do Rio em 2022. Neste ano, acabou de conquistar o prêmio de Melhor Filme no Festival de Huelva, na Espanha, com Retrato de Um Certo Oriente, numa coprodução do Brasil com a Itália e o Líbano. O drama foi adaptado livremente do romance de estreia do escritor amazonense Milton Hatoum, vencedor do Prêmio Jabuti de 1989, roteirizado pelo diretor em parceria com Maria Camargo. A história é muito atual e permanece constantemente na mídia internacional, como o bombardeio recente de Israel em Beirute para intimidar o grupo Hezbollah, embora conte a saga de imigrantes que fugiram do inferno da guerra no Líbano, em 1949, para enfrentar os desafios apresentados na floresta amazônica brasileira com suas peculiaridades bem características.

Com um elenco sólido de libaneses escalados nos papéis dos personagens principais, quase todos os diálogos do filme são em árabe, a trama gira em torno dos irmãos católicos Emilie (Wafa'a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) que decidem deixar sua terra natal em uma paisagem árida e montanhosa ameaçada pela guerra, em busca de uma vida melhor. No navio, a irmã conhece e se apaixona por Omar (Charbel Kamel), um comerciante adepto da religião muçulmana que se baseia nos ensinamentos do profeta Maomé. As desavenças entre os dois já começam em alto-mar, quando o irmão tem uma crise de ciúmes, influenciado pelas discordâncias religiosas, e acusa os seguidores do livro sagrado Alcorão de responsáveis pelas mortes de seus pais. Tenta separar o casal de namorados de qualquer maneira, culminando em uma briga violenta dos desafetos. Emir é gravemente ferido com um disparo de arma de fogo durante o conflito, o que acarreta numa forçada interrupção da longa jornada da viagem. Acabam entrando em uma aldeia indígena para buscar socorro imediato. Lá, todos os esforços do cacique são colocados em prática através de ervas e chás para salvar o rapaz convalescente.

Uma realização com um enredo aparentemente simples em uma narrativa dramática consistente sem deixar de ser contemplativa, que no desenrolar se mostra com boa profundidade. Às vezes, poética; em outras, dolorosa e sentimental. Aponta para os relacionamentos da paixão, da memória dos antepassados e do preconceito religioso. Revela as complexas relações familiares e culturais dos imigrantes em um país totalmente desconhecido e repleto de desafios. Vai da racionalidade à irracionalidade de pessoas simples em uma aventura com tintas de epopeia. Enfrentam uma série de desafios para testar a própria dignidade humana numa arriscada travessia a bordo de um navio superlotado, depois de ter fugido da crueldade de uma nação em chamas pelos atritos políticos e sociais. O diretor desglamouriza a obra ao optar pela instigante fotografia em preto e branco de Pierre De Kerchove, e evita as cores de um país convulsionado em situação caótica, bem como ao chegar em terras brasileiras com a imensidão de águas, pois há muito pouco de beleza a ser mostrada. Depois da recuperação do irmão, continuam seu propósito de chegar a Manaus, tendo a irmã reatando a relação amorosa com o comerciante responsável pela quase perda de seu familiar próximo. O casamento é marcado de imediato, embora haja um clima de consequências trágicas e duradouras perdurando na sombria atmosfera.

A obra traz um mergulho relevante nas questões de identidade e o choque cultural em uma abordagem que se concentra em sentimentos e experiências internas, e pelas reflexões sobre as complexidades da imigração e da construção de um novo rumo de vida na busca da harmonia. Tem um contexto fundamental para criar um clímax de medo da miséria recorrente e do terror psicológico pela barbárie das lutas sanguinárias, que torna o enredo amplamente complexo na essência do cinema, quando o cunhado com sua flor branca na mão assiste ao casamento escondido, com um olhar atônito e longe, antes de tomar uma decisão inusitada. O espectador se choca com as circunstâncias, embora surpreendidos no epílogo com elementos de intolerância religiosa extremada associada à culpa e ao arrependimento, na ânsia de resgatar a dignidade diante de uma imensa solidão. Os efeitos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada no destino almejado. A satisfação da cerimônia religiosa com seu futuro marido é como se fosse um troféu emblemático, ao melhor estilo das grandes sagas pela busca de um novo caminho para trazer vida digna, pela ótica dos próprios libaneses.

O filme é bem construído pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado, embora pontue com boa amplitude ao ser retratada com eficácia nas relações dos fragmentos da dura ruptura social do país de origem. Fica para trás os episódios sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade pelas dificuldades inerentes. O desfecho da transformação traz reflexos pelas mudanças comportamentais de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados. A carismática protagonista não demonstra fragilidades, mesmo sendo alegoricamente uma representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma nova mulher em uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Não é um simples relato sobre a jornada de dois irmãos libaneses que decidem imigrar em busca de uma vida melhor. É uma história com elementos humanos fortes, que revela diversos aspectos sobre os seres humanos que decidem sair escondidos pela coragem e resiliência diante do caos para seguir em frente. Eis uma admirável reflexão sobre a estupidez humana da guerra pela irracionalidade bestial de seus autores, dando também uma alfinetada certeira e enfática nas disputas religiosas acirradas, para quem aprecia relatos imparciais neste digno painel da sobrevivência como um sopro de esperança fora do Oriente Médio.