Defesa do Ecossistema
O diretor e roteirista uruguaio Pablo Trobo realizou Os Sonhos de Pepe, o primeiro capítulo de uma trilogia. Ele teve contato com José Alberto "Pepe" Mujica Cordano enquanto trabalhava como cinegrafista na campanha ao ser eleito presidente do Uruguai de 2010 a 2015. Narrado em off, num tom sombrio de lembranças do passado alternando para momentos entediados e pessimistas com o destino das fragilidades do planeta. As peripécias e assombros que passam o povo e o seu futuro são carregados pela subjetividade ao colocar num relato sincero e destemido. Há a inserção de vários discursos e pensamentos deste político e agricultor descendente de bascos, ateu, casado desde os anos 70 com a também ex-militante Lucía Topolansky. Após deixar a presidência, foi senador de março de 2015 até agosto de 2018, em um importante papel no combate à ditadura militar no seu país (1973-1985). São enumerados vários fatos com imagens para provocar o espectador a tomar uma posição sobre os acontecimentos históricos quer marcaram sua passagem pelo governo, sua visão sobre a humanidade com aspectos, circunstâncias e posições ideológicas, embora utópicas na maioria, para uma reflexão de nossa sociedade atual e o futuro dos seres humanos.
O documentário tem uma visão de exaltação ufanista com uma trilha sonora invasiva, evitando situações comprometedoras ou polêmica do protagonista, como a participação na guerrilha, do episódio conhecido como Tomada de Pando, ocorrido em 8 de outubro de 1969, quando o grupo guerrilheiro Tupamaros tomou a delegacia de polícia, o quartel do corpo de bombeiros, a central telefônica e vários bancos da cidade de Pando, situada a cerca de 32 quilômetros da capital uruguaia. Há uma passagem rápida em que Mujica comenta sem ressentimentos seus 12 anos na prisão, de onde só saiu no final da ditadura, em 1985. O longa-metragem acompanha o ex-presidente em suas viagens pelo mundo e seus deveres protocolares, como Tóquio, Rio de Janeiro, Nova Iorque, entre tantas outras. Ressalta sua visão progressista pautada pela sustentabilidade e pela justiça social em meio a um cenário de crise climática, uma posição divergente da predominante que sustenta e incentiva o modelo predatório e consumista da humanidade. O cineasta ressalta um "Pepe" existencialista que pergunta no início do filme: Qual o sentido vida? Preocupado com o aquecimento global, diz que a natureza já está se rebelando. A voz forte e as preocupações deste líder nato são as advertências sérias sobre o que está por vir, embora o meio ambiente já esteja dando sinais e alertando para o futuro do nosso planeta.
Enquanto acompanha sua rotina diplomática por um mundo mais igualitário, mais consciente e mais verde, Mujica vive do que planta em sua chácara nos arredores de Montevidéu, onde também aprendeu com os japoneses a cultivar flores. Doa 90% de seu salário para instituições sociais de caridade, sem abrir mão de dirigir seu velho Fusca azul-celeste de 1987 para ir ao trabalho ou se locomover na região, tendo rejeitado morar na residência oficial do Palácio de Suárez. Há méritos da realização quando é lançado um olhar de preocupação e angústia com as iminentes fragilidades de nosso universo corroído por um avanço sem controle e galopante dos descartes de materiais, principalmente tecnológicos, que poderão desconstruir e levar ao retrocesso de uma vida mais saudável. Ainda que sejam desejos fantasiosos, revela como a filosofia do ex-mandatário diante de um planeta a caminho do colapso climático com reflexões sobre como alterar esse panorama que urge em mudanças drásticas. Em novembro deste ano, houve discussões das cúpulas no G20 Social, o U20 e o Aliança Global que movimentaram o Rio de Janeiro no encontro das principais economias mundiais, pela primeira vez realizado no Brasil. A meta era aumentar o poder de países em desenvolvimento em instituições de governança global, como a ONU e a Organização Mundial do Comércio.
Os Sonhos de Pepe visa duas abordagens, sendo que a primeira retrata uma liderança inspiradora e consciente, prestes a completar 90 anos, que segue lutando por um mundo melhor não somente para si, mas para as gerações futuras, de um homem fiel aos seus princípios. A segunda tem como objetivo cativar o público com um sentimento de dignidade com o intuito de afastar o ódio nas diferenças políticas em tempos tão difíceis, deixando a esperança prosperar em um planeta mais sustentável. Os meandros intrínsecos e extrínsecos que norteiam o destino da humanidade são retratados pelo cineasta, sensível e preocupado com o mundo, que se sentiu tocado pelas preocupações do personagem central quando o conheceu em 2009. “O discurso do Mujica fugia da situação política daquela eleição. Ele sonhava com um mundo parecido com o que eu queria ver. Então, decidi acompanhá-lo e documentar tudo que fosse importante”, revela Trobo, em entrevista para o Festival do Rio 2024. “O subtítulo original, Movimento 2052, se refere ao ano em que especialistas preveem que o planeta chegará a um ponto sem volta se não reduzirmos drasticamente o consumo de recursos naturais”, conclui o documentarista.
Em 2018, o documentário El Pepe, Uma Vida Suprema, do cultuado cineasta sérvio Emir Kusturica, que o considerava “o último herói da política”, foi agraciado no Festival de Veneza com o Prêmio Enrico Fulchignoni do Conselho Internacional de Cinema e Televisão da Unesco. Já o filme de Trobo tem boas intenções, mas descamba para o discurso com um viés chapa branca numa identificação pelo engajamento. Ainda assim, um relato significativo e relevante por seu aspecto no foco ao ecossistema convalescente que verga para uma hecatombe perigosa. Fica o alerta para a necessária mudança de atitude climática para o futuro através de uma vitrine para o discurso de Mujica que assevera: “Em um planeta a caminho do colapso climático, onde a humanidade persegue um modelo predatório de desenvolvimento e consumo”. Acende e mexe com o espectador quando alerta “O tempo corre depressa e não é possível comprá-lo”. Sua posição forte soa como denúncia sobre o que é jogado nos rios e mares, como o descarte de roupas defeituosas da elite no Deserto de Atacama, virando um lixo que será duradouro por muitos anos. Sem ser definitivo e nem conclusivo, embora caia em recorrentes obviedades, o documentário apresenta a vida, o trabalho, as ideias e as convicções filosóficas e políticas de um líder de esquerda questionador. Um libelo da agressão à natureza que já está se revoltando como resposta de punição à humanidade que vai ao encontro dos desmandos e irracionalidades do homem.