quarta-feira, 24 de julho de 2024

Ervas Secas

 

O Sentido da Vida

O maior cineasta turco em atividades, Nuri Bilge Ceylan, de 65 anos, está de volta com Ervas Secas, um drama que aborda com profundidade a sociologia, a filosofia, os aspectos sociais e éticos ao redor. Lança um olhar sobre os efeitos internos de sentimentos de alienação e de afastamento, mas também interpreta as lutas dos moradores dessas regiões, a difícil vida e a dinâmica geográfica. Um filme de 198 minutos pode assustar no primeiro momento, mas flui e anda com uma ótima dinâmica do multifacetado roteiro, embora os diálogos sejam longos. Os conflitos escolares entre professores, alunos e direção soam como elementos alegóricos para retratar o sentido da existência de momentos marcantes na vida de personagens em busca de uma nova realidade. Salta aos olhos uma sociedade conservadora com raízes eivadas de tabus atrelada flagrantemente aos abusos autoritários. São simbolizadas pelos desmandos da derrocada e a divisão dos membros daquele microcosmo em iminente decomposição moral diante da luta pela dignidade humana dos vínculos a serem rompidos numa jornada emocional e visualmente deslumbrante. O filme estreou na Seleção Oficial do Festival de Cannes, onde Merve Dizdar venceu o Prêmio de Melhor Atriz e se tornou a primeira mulher turca laureada na história do festival. Foi selecionado oficialmente para disputar a Palma de Ouro em 2023, sendo indicado para representar a Turquia no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano. Pode ser visto nas plataformas Amazon Prime Video, Globoplay e Claro Now.

Ceylan já havia vencido a Palma de Ouro em Cannes e o prêmio da Federação Internacional de Críticos (FIPRESCI) com a obra-prima Winter Sleep (2014), batizado no Brasil com o título Sono de Inverno, possivelmente sua maior realização. Fez uma reflexão profunda sobre a existência e seu sentido na essência da vida, os efeitos do tédio e o ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda, acompanhado da solidão e da velhice que afloram de forma devastadora. Com o longa Distante (2002) venceu o Grande Prêmio do Júri de Cannes e de Melhor Ator; levou a láurea de Melhor Diretor em Cannes pelo perturbador e enigmático Três Macacos (2008). Arrasou depois com o inesquecível Era Uma na Anatólia (2011), pelo qual abocanhou novamente o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos arcaicos carros corroídos pelo tempo. Solidificou-se como um realizador preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está presente no caos instalado nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas. Em A Árvore dos Frutos Selvagens (2018), seu penúltimo filme, mostra a crise de um jovem apaixonado por literatura que sempre sonhou em se tornar um grande escritor e ter sua primeira publicação, na qual aposta tudo. Recém-formado na faculdade, retorna à região em que nasceu, mas vive às turras com o pai, um professor fracassado em meio à complexidade da situação em que se encontra pela decadência profissional, moral e familiar, e um apostador contumaz no hipódromo.

Ervas Secas foi baseada no diário do escritor e professor Akin Aksu durante seu serviço obrigatório de três anos na Anatólia. Assinou o roteiro em parceria com o diretor e Ebru Ceylan, e levaram cerca de um ano para concluir em coprodução com a França, Alemanha e Suécia. A primeira versão ficou enorme, duas vezes maior que Winter Sleep. Retrata com uma melancolia nostálgica de um passado idealizado e uma desesperança incomum na busca do sentido em vidas presas à deriva na trajetória do professor de meia-idade, Samet (Deniz Celiloğlu), que espera ser nomeado para Istambul após cumprir uma transitória passagem obrigatória em uma pequena aldeia, na qual o personagem central chama constantemente de “buraco”. Depois de muito tempo, vai perdendo a esperança de escapar daquela vida sombria e de pouco sentido. Ceylan demonstra ser um admirador de Samuel Beckett ao frisar no enredo a longa imaginação da transferência, assim como os personagens esperam Godot. Porém, seu colega Kenan (Musab Ekici) tenta ajudá-lo como pode para recuperar seu objetivo. Como retribuição, apresenta a ex-professora ideologicamente progressista que tem uma perna mecânica devido a uma bomba que explodiu numa manifestação, Nuray (Merve Dizdar). Ela luta para superar as adversidades, porque é preciso continuar vivendo, mas logo a traição como elemento de vingança, machismo e poder se estabelece naquele triângulo amoroso.

A remota aldeia parece ter apenas duas estações: o inverno inclemente coberto de neve intensa funciona como um personagem opressor ao amplificar a sensação de afastamento daquele lugarejo inóspito e completamente isolado, e um verão que revela as suas altas belas pastagens. O protagonista desenvolve uma obsessão pouco recomendável por uma aluna ingênua de 14 anos, Sevim (Ece Bagci), quando se derrama em delicadezas e elogios. Uma denúncia desencadeada pela descoberta de uma carta de amor leva a uma imersão na identidade psicológica dos personagens envolvidos. Contrário ao instigante drama sobre pedofilia A Caça (2012), de Thomas Vinterberg, o realizador afasta a suposta dúvida sobre o que verdadeiramente aconteceu com o registro da ocorrência pela conduta inapropriada. No questionamento sobre a responsabilidade, Ceylan não dá margens para mal-entendidos, embora sinalize o revanchismo adolescente como fato motivador, mesmo que a conduta daquele professor agradável, porém onipotente não seja correta, como presentear a aluna com um espelho e solicitar segredo. É uma situação ambígua e desproporcional pela forma autoritária que se porta na sala de aula, como na tirânica cena emblemática num surto de ego ferido. O docente vocifera que são pessoas ignorantes ao ser pressionado pela acusação que complicará seus planos, acaba atingindo todos os alunos ao decretar que são agricultores que não passam de “plantadores de batatas”. A ambivalência é o ponto alto da trama, por não conduzir como um personagem eticamente correto, moral e de comportamento nada exemplar. Justamente as contradições e tormentas apresentadas levam para a percepção do educador desiludido que brada o “cansaço da esperança”.

Assim como no recente A Sala dos Professores (2023), do diretor germânico, de ascendência turca, Ilker Çatak, eis uma realização com uma temática universal sobre as angústias através de uma ética que flutua por um terreno pantanoso na temática sobre os discentes e o corpo docente com a desconfiança dos colegas. Uma imersão na vida de um personagem contraditório que provoca reflexões sobre a educação, com a insatisfação dos professores como consequência de uma má gestão pública. Um mergulho sociológico-filosófico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, pouco importa. Todos com alma e coração, remete para os diálogos literários em uma das melhores cenas, como o longo debate entre Samet e Nuray, mesmo com visões discordantes ideologicamente. Invoca com facilidade a técnica para prender o espectador, abordando o cotidiano que se espraia num contexto de grande cinismo e domínio do poder, tanto do secretário de educação e do professor de personalidade complexa, sobre os inferiorizados pelas circunstâncias pessimistas. O desenrolar da história traz um aprofundamento intenso nos questionamentos implacáveis, pela maneira elegante da condução com um toque de classe com extremo realismo de cenas de som direto ao melhor estilo do rigor formal clássico típico do diretor. Há movimentos interessantes de uma câmera em longos planos-sequência, raros contraplanos curtos, captando as imagens fascinantes e a valorização primordial da importância da palavra, neste regresso à Anatólia. Além disso, a breve revelação dos bastidores soa com um gesto mágico inserido, no qual só um mestre é capaz. Uma obra extraordinária da existência e o seu sentido que faz refletir sobre os conflitos como mola propulsora para ir ao encontro das decorrentes fragilidades dos aspectos sociais e éticos. “Um frescor sensível e literário, chekhoviano como o inferno, sobre a passagem do tempo e os sentimentos que renascem”, sentenciou o crítico Louis Guichard, doTélérama.

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