segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os Fabelmans

 

Ode ao Cinema

Lincoln (2012), um épico de acontecimentos históricos que mexe na vida dos norte-americanos, na luta incansável do Presidente republicano reeleito para aprovar no Congresso a abolição da escravatura e The Post: A Guerra Secreta (2017), paradigmático estudo das teorias do jornalismo contemporâneo, no qual um repórter do jornal The Washington Post farejou algo de gravidade e iniciou uma investigação sobre a invasão de cinco homens na sede do Partido Democrata, que deu origem ao escândalo Watergate, foram as últimas duas realizações com méritos indiscutíveis de Steven Spielberg. Experiente em blockbusters como Tubarão (1975), Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Indiana Jones e Templo da Perdição (1984), Indiana Jones e a Última Cruzada (1989) e Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993), entre tantos. Seus últimos longas, Jogador nº. 1 (2018), Amor, Sublime Amor (2021) e The Kidnapping of Edgardo Mortara (2021), são filmes que pouco acrescentaram. Porém, cabe ressaltar suas obras marcantes, como a bela e profunda amizade de uma insuperável solidariedade entre um jovem e um cavalo puro sangue em Cavalo de Guerra (2011); do fascinante O Resgate do Soldado Ryan (1998); da dramaticidade eloquente de A Lista de Schindler (1993); do inesquecível e pujante drama racial em A Cor Púrpura (1985); do encantamento terno de E. T.- O Extra Terrestre (1982); e o suspense psicológico intenso em Encurralado (1971), foram realizações importantes na fértil criação de sua filmografia.

No primeiro grande lançamento de 2023, Os Fabelmans é o último longa de Spielberg e foi indicado com muita justiça em sete categorias ao Oscar deste ano, incluindo Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original, Melhor Atriz para Michelle Williams e Melhor Ator Coadjuvante para Judd Hirsch. Venceu como Melhor Filme Dramático e Direção no Globo de Ouro. Chegou a vez do lendário cineasta passar para a telona, nesta imaginativa mescla de ficção e realidade, numa autobiografia que revela sua exaltação ao cinema, com base em suas lembranças do passado num passeio intimista familiar, e a origem da paixão com a iniciação na sétima arte, nesta primorosa realização. Recentemente, outro diretor que buscou o caminho da autobiografia foi Alfonso Cuarón, com o premiado Roma (2018). A trama conta a história do jovem Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) que cresceu no Arizona pós-Segunda Guerra Mundial, se apaixona pela invenção cinematográfica depois que seus pais o levam para ver O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. DeMille. O protagonista que se recusava a assistir o filme fica fascinado pela grandiosidade da ficção e encontra na fantasia infantil o encanto pelas câmeras.

Uma paixão arrebatadora que leva aquele menino para um propósito, e mais tarde sua válvula de escape como refúgio. Inicialmente teve o incentivo do pai, Burt (Paul Dano), um engenheiro de computação que seguidamente troca de cidade por determinação da poderosa multinacional IBM, voltada para a informática; já a mãe, Mitzi (Michelle Williams- de estupenda atuação, num dos melhores papéis das sua carreira), é uma mulher frustrada por não conseguir colocar em prática seu talento de pianista. Foi apelida de Arthur Rubinstein por um tio (Seth Rogen), um artista devotado do circo. Ela incentivava o filho a realizar seu sonho, enquanto que o pai via apenas como um passatempo, queria que ele seguisse uma carreira promissora e com garantias como a dele. Então, Sammy decide explorar o poder da criação de filmes na ajuda de ver a verdade de uns sobre os outros e, por consequência, sobre nós mesmos e os mais próximos nas relações humanas. Soa como traços marcantes de uma autobiografia repleta de alegrias inesperadas e tristezas camufladas como o devastador segredo que guarda dos pais. A traição é uma marca forte no microcosmo daquela família, captada involuntariamente em uma das filmagens realizadas por Sammy em um vídeo caseiro, numa reverência ao mestre italiano Michelangelo Antonioni, no notável drama Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966), sobre um rolo fotográfico revelado que pode ter documentado, sem querer, um assassinato.

Novamente há o reencontro de Spielberg com o antigo parceiro John Williams, de 90 anos. Autor da maioria das trilhas sonoras da vasta filmografia do cineasta, em que mais uma vez dá aula de como criar uma atmosfera fascinante sem ser invasivo no desenrolar da trama, respeitando o momento da pausa e do silêncio, para os momentos em que a música deve estar presente. O dinâmico roteiro escrito pelo diretor em parceria com Tony Kushner, que nem faz sentir os 151min de projeção, além de retratar a adolescência de Sammy, alter ego de Spielberg, mostra os colegas de classe fazendo bullying através de sintomáticos ultrajes pelo antissemitismo que vivenciou o cineasta em lugares conservadores dos EUA. Até uma namoradinha devota fervorosa do Cristianismo fez pressão para que ele aceitasse Jesus Cristo, mas lhe virou as costas com o primeiro problema conjugal apresentado pelos pais do jovem. Uma redenção diante de uma situação de amor inocente que ficou para trás neste retrato do reencontro de um homem com seu passado e suas memórias com o sentido prazeroso de viver, diante de suas divagações reflexivas.

O trem é a mola propulsora do personagem central, desde a cena do descarrilamento na obra de DeMille, numa justa homenagem aos Irmãos Lumière, quando uma locomotiva vai de encontro à câmera e causa um frisson na plateia que assistia a primeira sessão organizada pelos inventores do cinematógrafo, em 1895. Outra cena inesquecível é o encontro do protagonista com John Ford (interpretado pelo cultuado diretor David Lynch), que lhe dá uma dica importante para sua carreira, quando menciona que o enquadramento do horizonte deve estar acima ou abaixo na cena, nunca no meio, pois seria enfadonho. O epílogo retrata o encontro de Spielberg, que realmente aconteceu, com o velho artesão mitológico, seu maior ídolo, realizador de No Tempo das Diligências (1939), As Vinhas da Ira (1940), Depois do Vendaval (1952) e Rastros de Ódio (1956). Presta um tributo inestimável de puro amor ao cinema e sua essência de forma admirável.

Spielberg se reencontra com a pura arte genuína do cinema e a sensibilidade de conduzir para absorver os infortúnios e buscar a retomada dos encantos que a vida oferece. Uma narrativa com tom de reminiscências pretéritas e os motivos fundamentais que o levaram para o pódio dos grandes realizadores. Um passeio sobre o painel familiar com situações do cotidiano, no qual as idiossincrasias se apresentam com suas peculiaridades inerentes, profundamente específicas, autêntica e dolorosas, às vezes. Não há acontecimentos surreais ou estratosféricos. Comove e cativa nos aspectos psicológicos construídos com primazia sobre o ser humano depurando as angústias num desfecho de amor em êxtase intimista, apontando como referência uma trajetória digna e humana numa consequente suavidade pelo amadurecimento. Provoca estímulos pela emoção e a crença de que o cinema está em flagrante resistência para manter a chama acesa pela efervescência cultural inesgotável da arte que permanecerá como legado, nesta admirável homenagem em Os Fabelmans.

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