terça-feira, 2 de agosto de 2022

O Truque da Galinha









Mãe e Filhos

Vem do Egito em coprodução com Holanda, Grécia e França o disruptivo e cativante drama social O Truque da Galinha, do jovem diretor estreante Omar El Zohairy, de 33 anos, que assinou o roteiro em parceira com Ahmed Amer. Venceu o Grande Prêmio da Semana da Crítica do Festival de Cannes. O cineasta construiu uma narrativa que se aproxima do neorrealismo italiano, movimento cultural surgido na Itália ao final da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema, tendo como seus maiores expoentes Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que iria influenciar a cinematografia produzida no Irã. Tem na dinâmica descritiva a inspiração dos cineastas iranianos Abbas Kiarostami em Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), bem como de Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade atrasada e completamente arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados que agem com o instinto machista de métodos clássicos utilizados pela máfia.

A trama gira em torno de uma família forçada a um período de autodescoberta, depois que seu patriarca autoritário endividado com a fábrica em que trabalha é acidentalmente transformado supostamente em uma galinha por um truque de mágica que dá errado na festa de aniversário de um dos filhos. Uma avalanche de coincidências absurdas do cotidiano kafkiano recai sobre todos como uma fábula adulta repleta de adversidades com sabor melancólico impregna o microcosmo familiar abalado pela desgraça. A calada mãe (Demyana Nassar), cuja vida foi dedicada ao marido e aos três filhos menores, um ainda sendo amamentado, vai ser o foco da aterradora situação. Moram numa casa humilde, uma típica tapera com paredes sem tinta, pouca iluminação, raros móveis, uma precária televisão, e a fumaça cinzenta da fábrica vizinha invadindo constantemente a residência quando a janela está aberta. Logo, o ambiente anoitece imediatamente como num estalar de dedos. Ela é uma brava leoa na defesa de seus filhotes, que assume a condição de administradora do lar para lutar com uma dignidade comovente. Tenta encontrar o marido, mas passa por humilhações e assédios, inclusive por um homem familiar, a quem se vinga com inteligência atroz. Busca emprego em vários lugares, mas acaba despedida por alguns desatinos para a subsistência. Consegue colocar para trabalhar num subemprego o filho mais velho de pouco mais de 10 anos, mas ainda assim as contas se avolumam cada vez mais, inclusive o aluguel atrasado por três meses seguidos.

O filme tem parâmetros em outra produção egípcia, Yomeddinne- Em Busca de Um Lar (2018), do roteirista e diretor Abu Bakr Shawky, que representou o país na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar. Abordava um homem pobre, catador de lixo que decide sair pela primeira vez do confinamento da colônia de leprosos de uma comunidade isolada onde foi abandonado quando criança, para embarcar numa jornada até sua cidade natal, à procura da família e saber o motivo pelo qual seu pai nunca cumpriu a promessa de voltar para buscá-lo. Também há similitude com o provocante drama social Cafarnaum (2018), de Nadine Labaki, que representou o Líbano na categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar de 2019. Retratava os perigosos desatinos pelas rupturas dos laços que unem os respectivos membros familiares, além de mostrar os problemas de imigração e o descontrole da natalidade, com boas doses de manifestações positivas que vão ao encontro dos anseios de justiça social. O Truque da Galinha, um título condescendente com a brutal realidade, embora remeta para uma comédia, passa longe deste gênero, pois sua construção é oriunda do absurdo que vem para escancarar uma dura veracidade de uma sociedade patriarcal extremamente machista e conservadora. Embora seja doloroso na sua temática, tem como grande mérito ser transformadora para inquietar o espectador de maneira contundente e transgressora.

O promissor realizador mostra talento para abordar um filme complexo na sua essência pontilhada pela amargura de uma família em frangalhos. A perda momentânea do pai gestor que evaporou de circunstâncias pouco esclarecidas pelas autoridades policiais, que irão dar uma resposta na trama quase no desfecho, deixam margens para dúvidas e especulações sobre a verdade do desaparecimento. O inusitado epílogo remete para um semelhante no extraordinário drama Amor (2012), de Michael Haneke, soa como uma atitude redentora e reflexiva sobre os métodos de carinho, ternura e da defesa incondicional da grande amizade mesclada com amor e sofrimento. Retira os véus dos bons costumes, dando um tapa na cara da infelicidade, como fez a protagonista num ato de desabafo e desespero, partindo para o confronto entre a vida e a morte, diante das emoções existenciais sobre o progressivo fim do ser humano virado um farrapo. Aquele cenário insalubre com a presença da galinha ciscando sobre a cama, mostrado em quadros fixos, repleto de silêncios perturbadores e incômodos ruídos externos, conduzem para uma densa contemplação que beira o apocalíptico mundo das mulheres excluídas pela violência latente, às vezes; e recorrentemente severa. A pobreza salta aos olhos como um deplorável elemento de uma força propulsora arrasadora. Com garra, dignidade e muita dor no coração e na alma, a protagonista dá uma aula de lição de vida pela sobrevivência dela e de seus filhos. São paradigmas humanos resultantes de uma reflexão pontual, que faz com que as cenas tenham o caráter da luta monumental daquela criatura humilhada, sem piedade.

Um drama com efeitos sociais impactantes na abundante falta de solidariedade mesclada com o deboche arrogante, através de atitudes condenáveis a pessoas realmente vitimizadas pelo infortúnio do destino neste relato cruel, mas aterrador na manifestação da arte cinematográfica que rasga a mente, abala a consciência e revela o caráter dizimante de uma casta de pessoas poderosas contagiadas pela desumanidade com os excluídos da sociedade dominada pelos homens. Importando-se muito pouco com os necessitados próximos. Além da paupérrima vida da personagem central com seus filhos dependentes, tem ainda que conviver com a segregação de gênero devido à condição de ter nascido mulher. Um filme com um olhar feminino, de poucos diálogos, em que as imagens chocantes revelam os enigmas apresentados pelo enxuto roteiro. O desenrolar da trama é eloquente pela altivez da sensibilidade de focar a chaga maligna enraizada no seio de uma sociedade preconceituosa deste tema universal sobre a condição humana da mulher, que passa pela pujança estimulante de impor sua vontade para um futuro da liberdade inegociável. Para isto, sobrou uma invejável força interior e uma resiliente capacidade emocional naquela mãe, que nunca se esvaiu ou se desequilibrou, mesmo que os transtornos se multiplicassem, para não se afastar do amanhã com marcas de uma esperança redentora.

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