segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Mignonnes (Lindinhas)

 

Prematura Sexualização

A diretora e roteirista Maïmouna Doucouré, de 35 anos, tem muitos méritos no seu polêmico filme de estreia Mignonnes (Cuties no título em inglês; batizado no Brasil como Lindinhas). Pela temática abordada, afirmou ter recebido ameaças de morte e insere-se como uma promissora cineasta. O lançamento ocorreu em 10 de setembro e está tendo uma controvertida acolhida na plataforma de streaming da Netflix, que se envolveu gratuitamente numa celeuma motivada por um pôster supostamente sexualizado de meninas de 11 anos. Causou ira em uma parcela de assinantes, que entenderam ser um incentivo à pedofilia. O cartaz que anunciou a estreia mundial é bem diferente do usado na França, no qual as menininhas alegremente carregam sacolas de compras. Na divulgação da Netflix, o que elas vendem sugeriu manifestações controversas e induziram a equivocadas interpretações ao posarem com roupas supostamente sensuais, grudadas ao corpo, motivando uma campanha no Twitter para boicotar e até retirar o filme da plataforma. No dia 20 de agosto, houve a substituição do cartaz com pedido de desculpas.

O drama contemporâneo atualíssimo, baseado em fatos reais, mostra as publicações que se tornaram eficientes na internet voltadas para a maldade cibernética. A realizadora franco-senegalesa venceu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Sundance (Estados Unidos) e a obra está focada numa crítica à hipersexualização de meninas, diante da fase de transição que passa pela pré-adolescência e adolescência. Na realidade, é uma abordagem aprofundada em defesa da criança decorrente de fatos relevantes que aceleram a passagem pelas descobertas nas redes sociais e suas armadilhas encontradas facilmente nos celulares e os perigos que deles rondam. A trama gira em torno de Amy (Fathia Youssuf- impecável em seu papel), que mora com a mãe (Maïmouna Gueye), uma tia e dois irmãos menores num conjunto habitacional em um subúrbio da França. A protagonista é uma francesa de ascendência senegalesa, de 11 anos, que está emocionalmente abalada e chora embaixo de uma cama ao ver a mãe conflitada com o pai retornando do Senegal com outra mulher para se casar e morar com elas. Seus hormônios estão em ebulição e a sexualidade aflora precocemente com a primeira menstruação. Sofre rejeição de colegas no novo colégio por não saber dançar. A adaptação é difícil e as mudanças na vida familiar causam impactos relevantes.

A diretora coloca com habilidade elementos de discórdia no microcosmo da família, como na cena em que a mãe reserva um quarto da casa para o marido que está por chegar com a futura esposa. A menina ouve como consolo que “a água lava os pecados”, porque não admite o pai bígamo. A mãe, mesmo contrariada, aceita a situação atípica por motivos da religião que permitem a poligamia e o dever de obediência ao esposo. A tia acusa a protagonista de prostituta e de usar um vestuário fora dos patrões comportamentais. As situações conflitantes existentes são fatores que registram a hipocrisia suprema de uma sociedade tolerante por dogmas religiosos. Amy vê na dança a liberdade de expressão pela sua coreografia ousada e tem na vizinha Angelica (Médina El Aidi-Azouni) uma aliada que a estimula a participar do concurso pelo grupo de amigas que dá o título ao filme. É uma válvula de escape para afogar as mágoas e enfrentar o reinante conservadorismo advindo da religião islâmica seguida pelos imigrantes senegaleses. É um filme que não explora o corpo infantil, mas contextualiza a exploração num sentido amplo da mulher precocemente submissa. A cena da filha e da mãe vestidas para o segundo casamento do pai e marido é outro indicativo de resignação ao mundo masculino.

Mignonnes (Lindinhas) não é somente um filme ostensivamente antidogmático, mas uma realização que mergulha em um novo contexto para reescrever sem preconceitos e tabus pregados pelo falso moralismo. Indica um norte para um olhar atento da prematura sexualização como sintoma dos perigos disseminados que brotam das redes sociais. Soa como um alerta geral para pais interessados em resolver problemas e não fazer campanhas para proibir um filme que denuncia uma dolorosa realidade, como na instigante cena em que a personagem central aproveita por estar coberta com o véu durante um encontro religioso coletivo para ver clipes eróticos. Retrata a exposição potencializada de crianças no ambiente digital sem o acompanhamento dos pais, no qual há um território que estimula o exibicionismo excessivamente competitivo. A pré-adolescente se insurge pela cultura de liberdade irradiada da dança contra a permissividade religiosa concedida e principalmente pela opressão às mulheres. A pecha da suposta culpa não é das garotas dançarinas que nada mais fazem do que imitar as coreografias escancaradas ao público de vídeos musicais protagonizados por adultos.

Doucouré faz com veemência um exemplar libelo através de uma realização sem concessões da sexualização precipitada e uma “adultização” antecipada com caras e bocas erotizadas, decorrentes do palco em que se realiza o concurso promovido somente por pessoas adultas. O objetivo é de perturbar o espectador com uma proposta consistente para um alerta com horizontes amplos para afastar aquele olhar mirrado do conservadorismo predominante de nossos dias. A pior cegueira é aquela do tapar os olhos através de uma visão míope da proibição imposta. O redentor epílogo surpreende ao remeter a menina vitimada pelo contexto para um momento lúdico da criança alegre e inocente pulando cordas na rua como uma metáfora de libertação do estigma da falsa adulta perdida no palco. Um admirável drama intimista de denúncia com muito equilíbrio e humanismo carreados para um questionamento verossímil na turbulência das contradições que o universo feminino sofre e carrega, estando muitas vezes num isolamento de cobranças diárias sem limites e impostos pelo fechado espaço machista com reflexos no complexo núcleo familiar.

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