terça-feira, 12 de novembro de 2019

Parasita



Arrasadora Injustiça Social

O Festival de Cannes de 2019 premiou com a Palma de Ouro o filme da Coreia do Sul Parasita, com uma abordagem aprofundada e sem concessões sobre a tentativa de ascensão social de uma família excluída que vive na miséria e todos seus membros estão desempregados. É a busca por uma vida digna com todo seu glamour em um núcleo de uma residência composta por um casal rico, uma menina adolescente e um garotinho pré-adolescente, em que só o homem trabalha. Há discussões amargas e controversas de contornos de grande relevância sobre as regras e o formato que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. Ninguém sairá ileso desta convivência marcada por acontecimentos de alta tensão, humor e a tragédia iminente com o resultado do confronto de classes distintas e paradoxais. A sociedade contemporânea está em pauta e o questionamento é lançado pelo olhar atento do festejado cineasta Bong Joon-ho. Este drama social que transita do suspense para o terror é o representante coreano para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, sendo ainda laureado como o melhor filme escolhido pelo público na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ocorrida em outubro deste ano.

O realizador sul-coreano já havia surpreendido com O Hospedeiro (2006), tratando seus monstros com seriedade numa civilização dos homens, tendo por cenário a beira do rio Han poluído ao extremo. Lá, uma família dona de uma barraca de comidas no parque é aterrorizada por um animal gigantesco que emerge do fundo do rio e leva a neta do patriarca. Os monstros se confundem com os humanos e os demônios são exorcizados. Já no episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), onde dividiu espaço com Michel Gondry e Leos Carax, aborda um dos mais melancólicos e devastadores relatos de solidão humana contados no cinema, no qual um rapaz está enclausurado em sua própria casa há mais de dez anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas num mundo claustrofóbico de distanciamento com o ser humano. Em Memórias de um Assassino (2003), brinca com o público espectador, pois uma jovem brutalmente assassinada num lugar convence a polícia tratar-se de um serial killer, mas os fatos se repetem em outras localidades, deixando aturdidos os detetives, começa então uma investigação minuciosa e interessante, demonstrando influência forte do mestre Alfred Hitchcock. Depois veio Mother- A Busca Pela Verdade (2009), na aproximação do realismo com o fantástico para desqualificar o possível culpado, buscando no jogo de valores sua visão crítica.

Assim como nas realizações anteriores, o irrequieto diretor retrata o processo civilizatório se brutalizando com os atos convergindo para o confronto da explosão social se acirrando, contrapondo com o processo de destruição já invocado nos longas O Hospedeiro e Mother- A Busca Pela Verdade. Os animais selvagens e irracionais de Joon-ho são bem identificados e estão entre aqueles que destroem e violentam a humanidade. Em Parasita, a situação se altera quando o filho mais velho (Choi Woo-sik) consegue emprego de professor de inglês na bela mansão com uma arquitetura moderna, repleta de espaços vazios pertencente à família dos Park. A farsa burlesca será um ingrediente astuto para os planos bem bolados para colocar os demais integrantes naquele cenário convidativo: o matreiro pai (Song Kang-ho), a sóbria e dedicada mãe (Chang Hyae-jin) e a esperta filha (Park So-dam). O retrato da polarização pela desigualdade terá contornos pelo desequilíbrio de uma cruel sociedade consumista. O fio condutor narrativo chega até a violência não gratuita, mas quase circunstancial, pelo desdobramento da trama do roteiro dinâmico. Embora com um banho de sangue apoteótico no desfecho, ao melhor estilo de Tarantino, quer sacudir e mostrar quem são os incivilizados e desmedidos de nosso planeta, assim como já o fizera no conjunto das obras antecessoras.

A desenvolvida sociedade coreana cultural e tecnológica serve de ponto de reflexão para a contundência crítica do cineasta, em que nada fica estático. Tudo se move para a ilicitude, como a armação artística dos depauperados na busca forçada do convívio harmonioso na família abastada que esconde suas maneiras desumanas de um digno convívio social. O contexto é arrebatador e faz sentido, como a oca do menino americanizado que pratica suas bizarrices no jardim, por estar traumatizado ao ver um fantasma emergindo do bunker construído no porão que guarda um segredo da ex-governanta e que virá à tona numa noite chuvosa, enquanto os ex-patrões estão ausentes. A festa com a simulação do embate dos índios alegoricamente importado da América do Norte irá se tornar real e a grande catarse explodirá como redenção no epílogo. É o confronto dos desiguais entre eles, remanescendo para os iguais com os desiguais, em que uma família paupérrima que mora numa sub-habitação abaixo do nível da calçada na periferia. Mas do grande golpe arquitetado pela sobrevivência melhor, haverá a noite fatídica de uma grande enxurrada de água da chuva torrencial que inundará os bairros periféricos, origem da família protagonista da gambiarra, com o lixo se espalhando e invadindo as pequenas residências. Durante a tempestade premonitória, a ojeriza do patrão pelo cheiro dos empregados relacionados aos pobres usuários do metrô é reveladora para a vingança redentora diante da dor humilhante. É o ingrediente dilacerante como forma de discriminação que faltava e marca com tintas fortes. Mas há o sonho do filho em estudar e que vira obsessão para resgatar o pai do autoexílio.

Ao retratar as classes sociais diferentes com personagens de lados opostos, há uma similaridade com o notável Assunto de Família (2018), de Hirokasu Kore-eda, tanto pela estética como pelo foco social. Parasita é comovente e fisga pela sobriedade de seu realizador na busca de apontar os erros graves de seu país pelo capitalismo desenfreado advindo dos EUA. Mas não poupa a Coreia do Norte e seu ditador, na alegoria do celular que registra os equívocos da farsa montada, ao fazer a similitude da mensagem a ser enviada pela ex-empregada com o dedo do tirano Kim Jong-un do país vizinho para disparar o botão da bomba atômica e explodir o mundo. Uma realização singular por ser convincente na sua proposta sem concessões e com o objetivo de perturbar e tirar da zona de conforto o espectador com uma representação mordaz e contundente. Ninguém fica alheio aos caprichos sem compaixão dos corretos transformistas cidadãos aristocráticos, ou ainda da malandragem dos alijados pela boa convivência social harmoniosa para viver em solidariedade espúria, enquanto tentam uma rede gratuita de wi-fi dos vizinhos. A reflexão é proposta e os monstros se multiplicam, à espera da conscientização oprimida pela repressão de valores que aguardam a absorção, como metáfora de uma civilização doente e em vias de extinção através de uma fábula adulta com contornos trágicos na busca do topo da pirâmide para abandonar o triste isolamento da injustiça social. Emociona por ser intensa e complexa, madura e completa, instigante e impactante, que atinge o patamar de a obra-prima da carreira de Joon-ho. Sem dúvida, até agora, o melhor filme do ano.

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