quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O Homem das Multidões





















A Solidão

A dupla de cineastas Cao Guimarães e Marcelo Gomes realizou uma obra fascinante neste O Homem das Multidões, sob o ponto de vista da aproximação de dois seres humanos num contexto de solidão e melancolia na metrópole de Belo Horizonte. Os diretores retratam um drama intimista com diferenças e afinidades que irão se aproximando com o tempo, no contraste da lente de filmar que os mantêm sempre afastados da realidade da cidade grande. O painel irá refletir os dois personagens centrais próximos fisicamente e distantes no aspecto emocional e psicológico, abalados pelas circunstâncias das respectivas presenças de um e de outro, onde se confunde amor com amizade. Guimarães buscou inspiração no conto homônimo de Edgar Allan Poe, para fechar a Trilogia da Solidão, que iniciou com os documentários Alma do Osso (2004) e Andarilho (2006).

O filme está bem alicerçado na estrutura dos protagonistas Juvenal (Paulo André- de sóbria interpretação) e Margô (Silvia Lourenço) na lógica da solidão, como bem explorado na singular película argentina Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, onde dois vizinhos solitários que não se conhecem, embora morem no mesmo prédio, mergulhados no vazio existencial no mundo da era virtual e moderna. Há também a mesma solidão que tenta aproximar dois vizinhos pelo impasse da construção de uma janela, em outro longa argentino O Homem ao Lado (2009), de Mariano Cohn e Gastón Duprat. Ou ainda no comovente Ela (2013), de Spike Jonze, quando a relação amorosa explode de um homem por uma voz feminina computadorizada que passa a ser sua namorada, aborda as atitudes de pessoas, que cada vez mais estão fora do realismo do mundo, sem chão e sem perspectiva.

A trama tem de um lado Juvenal, um metroviário que está sempre à procura de um foco no horizonte perdido, chega a dormir no controle da cabine, sendo salvo pelo “homem morto”, um dispositivo que alerta para os esquecidos para evitar acidentes. Tem a rotina de um frequentador contumaz de lugares abarrotados por pessoas, ao andar repetidamente nos mesmos ambientes como um autômato invisível na multidão sempre incomunicável. Do lado oposto tem Margô, a colega que controla o fluxo dos vagões e que está de casamento marcado, através de um fortuito romance na internet, convida o colega para ser seu padrinho na cerimônia, na busca da felicidade plena embalada e referendada pela trilha sonora.

O longa avança na narrativa, diante do convite do apadrinhamento feito pela moça para o rapaz, sendo que a partir deste momento único há uma aproximação pela amizade existente entre ambos, que parecem assustados com a situação inusitada que abre uma fresta para um vínculo mais profundo, que teima em resistir. Não há ação, apenas o silêncio com os ruídos externos que predominam os encontros, como bem enfatizado no excelente O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, ao mostrar o coronelismo e seu domínio territorial no bairro, sem perder a poesia com sensibilidade sensorial dos sonhos convulsivos que poderão ser realidade. O Homem das Multidões cresce ainda mais no retrato fiel e instigante da solidão, como no estupendo Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, paralisante e arrebatador na abordagem de dois personagens sozinhos o tempo todo, sofrendo com o fuso horário em Tóquio, não conseguem dormir e se encontram por acaso, no bar de um hotel de luxo. Ou no inesquecível episódio Shaking Tokio, dentro do longa Tóquio (2008), do sul-coreano Bong Joon-ho, num dos mais devastadores relatos de solidão humana, onde um jovem está enclausurado em sua própria casa há mais de 10 anos, isolado do mundo e das pessoas, exceto quando recebe o entregador de pizzas.

O drama é realizado num clímax claustrofóbico que sugere a prisão dos protagonistas, em que os diretores inovam na filmagem dentro de um retângulo de imagens 3x3, num formato de isolamento por enquadramento com planos distantes e bastante contraplanos para realizar o espaço do quadro a quadro. O espectador pode então lançar seu olhar de preocupação e intervir como se fosse participante da angústia destruidora. As visualizações do casal são ambientadas por uma bela fotografia esmaecida em tons pastéis e com visão de dor e tristeza, dentro do silêncio onipresente, quase nauseante pela falta da interação, com as subidas e descidas de escadas rolantes e o foco vai ao encontro das pessoas nos seus fluxos rotineiros, entre elas observar de casa ou sentar no banco do parque para assistir os pedestres andando em remoinho.

Os diretores enfatizam com pertinência Juvenal fazendo sempre as mesmas coisas: caminha na multidão, ouve rádio, come e bebe, faz a limpeza da residência e reclama instintivamente por sussurros. Uma rotina silenciosa e martirizante sob o prisma da normalidade, diante da alma que parece doer sempre e o sentido da vida inexiste como objetivo para a convivência social. Sobra pouco de vida para aquele existente vazio urbano desalentador, sem perspectiva e pessimista, para duas pessoas caladas e retraídas pela inércia, ausentes do mundo real e inevitavelmente melancólicos e aniquilados pela imensidão da metrópole, neste magnífico ensaio reflexivo sobre a solidão, um dos grandes males dos tempos modernos.

Nenhum comentário: