segunda-feira, 5 de maio de 2014

Cães Errantes


Miséria Angustiante

O filme Cães Errantes do malaio radicado na China Tsai Ming-Liang é daqueles que já no prólogo demonstra a intenção do cineasta: cenas em quadro estático, planos longos, escassos diálogos, como se vê na mãe ao se pentear que observa o casal de filhos dormindo languidamente. Também no epílogo a cena demora intermináveis 13 minutos na contemplação do desagregado casal para o mural em fundo branco com indicações de pedras sobrepostas. Os rostos estão contraídos e eles praticamente não se mexem, mas há um sentimento de dor, tristeza, arrependimento e tentativa de reconstrução com raiva e nojo misturado nos sentimentos e no corpo masculino de respiração arfante e de extrema angústia e desilusão com o mundo.

O diretor faz o recurso brusco das elipses ao trocar o cenário e conduzir o espectador para o plano seguinte, com a trama se desenvolvendo numa família que rompe, os estilhaços se espalham com o pai cuidando das duas crianças, onde o filho mais velho é o responsável pelos cuidados da irmã menor e administra o dinheiro do genitor que trabalha de biscates que recebe para ser aquele calado e solitário homem-placa na calçada (Lee Kang Sheng- de interpretação memorável), sob as intempéries do tempo, com chuva e vento, fica estático, canta o hino da desolação de seu país. Confessa estar com raiva, chora, fuma, bebe, explode sua ira na contrariedade das vidas errantes como se fossem animais vira-latas pulguentos que levam e os aniquilam psicologicamente. A fuga de barco com o casal de filhos e a aparição da esposa ausente que trabalha num supermercado conduz a trama para uma tentativa da reconciliação com a dignidade que se afastou há muito tempo.

Ming-Liang utiliza o cenário de uma casa abandonada em franca decomposição e na iminência de desabar, como metáfora da família em rota de ruptura, como na cena da agonia no quadro imóvel, em que há a tentativa de juntar os cacos dos destroços de uma situação em que o microcosmo familiar está em franca decadência e em vias de extinção. Um filme que passa a dor dilacerante de um pai desesperado e na miséria sufocante, tanto física como existencial, transmitida para a plateia que não está muito receptiva para a proposta experimental, o que causa um desconforto e o abandono da sala por muitas pessoas. Não é uma película de fácil aceitação, é bem verdade, mas instiga na essência e provoca através de uma estética não convencional chocante e hiper-realista que mexe com o espectador na sua comodidade de assistente através de uma metalinguagem fascinante.

Há a intenção magistral deste drama sobre a dignidade esboroada pela desgraça e o sofrimento do reencontro e da recomposição passada com um ardor primoroso e sufocante com pitadas de gangrenamentos, porém sem perder o afeto ou o amor na filha que faz do repolho uma boneca simbolizando a figura materna. Cães Errantes busca um estado na falta de movimentos como a iluminação para o rompimento deliberado para o pensamento ilógico, como numa filosofia zen budista obtido pela prática de meditação sobre o vazio, ou ainda refletir a respeito dos paradoxos e a plenitude da dignidade das vidas em consonância com as atrocidades advindas pelo destino da indigência humana.

O veterano cineasta adora estes recursos de longos planos e se utiliza com uma magistral eficiência, embora pareça meio desleixado e com dificuldades de edição, mas é sua marca registrada, como já fora com o vencedor do Leão de Ouro em Veneza por Viva o Amor (1994); O Rio (1997); e O Buraco (1998); deu uma guinada e alegrou o público ao fugir da tristeza latente com O Sabor da Melancia (2005); vence o prêmio do júri no Festival de Veneza de 2013 com este extraordinário drama que vai ao encontro de um conteúdo de renovação para um cinema inovador e marcante como simbologia de uma arte que está sempre em estado de efervescência transformativa de vanguarda e experimentação pela contundência num cenário inóspito realista de Taiwan em que foi realizado este filme incompreendido por muitos, por retratar a destruição humana com extrema melancolia que busca um objetivo como reflexão para o sentido existencial sem perder a identidade. É para chocar mesmo e fazer com que aquele espectador que ficou até o fim da sessão, reflita.

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