A peça teatral Júlio
César, de William Shakespeare, é levada ao cinema pelos irmãos octogenários
Paolo e Vittorio Taviani, 81 e 83 anos respectivamente, para ser encenada por um
grupo de presidiários selecionados pelo teatrólogo Fábio Cavalli, também
responsável pela montagem de A Divina
Comédia, de Dante Alighieri. César Deve
Morrer teve como cenário a prisão de segurança máxima Rebibbia, em Roma, conduzido
pelos irmãos cineastas que fazem um belo e sensível registro documental ao
ficcionar o enredo trágico numa adaptação magistral para as telonas escuras.
Foi vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2012.
O formato é uma mescla de entretenimento com elementos
tipicamente documentais para o ensaio e a apresentação de homens perigosos de
um presídio hermético. Homicidas, traficantes, mafiosos e ladrões de alta
periculosidade são os rostos que comporão aquela espetacular encenação de atores
amadores recrutados entre facínoras, com uma abordagem pertinente aos travestidos
intérpretes, como a busca da liberdade contrapondo com a cena final da clausura
e a volta à realidade tristemente dolorosa deste painel humano.
A tirania de César com a consequente traição de Cássio e do
próprio filho Brutus causam a revolta de Marco Antônio na defesa do império,
originando a grande batalha final na montagem para o teatro filmado, mas sem se
afastar da linguagem e o fascínio do cinema, com um cenário único como visto
recentemente no extraordinário Amor
(2012) de Michael Haneke; ou no bom filme Deus
da Carnificina (2011), de Roman Polanski; ou ainda no magnífico Vocês Ainda Não Viram Nada!, de Alain
Resnais. É bem original a jogada cênica, como foi também intuitiva a criação de
Eduardo Coutinho em seus documentários Jogo
de Cena (2006) e Moscou (2009). Há
criatividade e o resultado é uma obra profunda e notável em todos os seus
aspectos, como nos seus similares.
Outro ponto abordado com sabedoria é a ambição, mencionada
várias vezes e se misturando com a liberdade de um povo e com o pedido do
imperador para colocar fogo não só em Roma, mas no mundo, pela explosão de
seres oprimidos e sem voz que buscam no grande testamento a saída para a
libertação e o fim das amarras que prendem os súditos sofridos e esmagados pela
opressão.
O clássico é na realidade mais uma busca pela desconstrução
do que uma adaptação simples, como admitido pelos cineastas ao receberem o Urso
de Ouro. Retrata o filho matando seu pai para satisfazer os senadores romanos
contrários ao poder totalitário do imperador. É sintomático o arrependimento e
o desespero na cena do epílogo, diante da busca enlouquecida de um voluntário
para pôr fim no martírio do parricídio abjeto e imperdoável que leva às ruas
uma multidão à procura dos traidores, diante da tragédia e a busca obstinada
pela redenção.
Ao se optar pelo preto e branco na fotografia, há uma
aproximação bem maior com o realismo cênico daquela fortaleza com suas celas e
corredores inexpugnáveis, sem glamourizar com cores e cenários deslumbrantes, dando
com precisão o sentido claro e verossímil para o olhar atento do espectador. Há
uma evidente semelhança como tom de documentário no prólogo que vai se
dissipando com o desenvolvimento da trama, deixando a dramaticidade na sua
essência abranger o filme, secundado por uma magistral trilha sonora conduzir
com suspense equilibrado no magnífico acabamento estético dos diretores de Pai Patrão (1977) e A Noite de São Lourenço (1982), inspirados pelo neorrealismo do
cineasta italiano Roberto Rossellini, de
Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisá
(1946).
César Deve Morrer
traz uma reflexão fabulosa sobre os encarcerados atuando na amplitude das cenas
em contraste com os ensaios levados com extremo rigor e profissionalismo. Uma
ficção que se aproxima de uma realidade bem próxima, por ser contemporânea
dentro de um presídio com a tentativa da ressocialização de marginalizados como
um grande projeto criminal, levando a cultura aos detentos e refletindo sobre a
ambição que desemboca na traição, bem como a tirania que torna a liberdade numa
catarse explosiva pelo anseio obstruído na garganta. E lá fora existe a ideia
de uma nova vida esperando, como num tormento que persegue aqueles homens
fantasmas.
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