quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Netto e o Domador de Cavalos



Netto e as Lendas

Beto Souza e Tabajara Ruas tiveram muito êxito e esbanjaram competência com o longa-metragem Netto Perde Sua Alma (2001), um épico sobre a vida de um dos heróis da Revolução Farroupilha, Antônio de Souza Netto (1803-1866), com toda sua grandiosidade e força narrativa rodado na pampa gaúcho, retratando os aspectos intrínsecos e extrínsecos e as suas motivações que levaram o povo rio-grandense deflagrar aquela mitológica revolução.

Agora Tabajara Ruas escreveu e dirigiu sozinho este segundo filme Netto e o Domador de Cavalos, sobre a saga do velho general. No primeiro houve a sustentação do livro de Ruas, que desta vez preferiu escrever um roteiro objetivando somente o longa. Logo virá o terceiro filme, provavelmente no próximo ano, para completar a trilogia da saga do general Netto, nascido em Rio Grande (RS) e morto em Corrientes (Argentina), teve sua trajetória de lutas e guerras entre o Rio Grande do Sul, Uruguai e o Paraguai.

Espera-se um melhor resultado, com menos ufanismo de uma retórica superada, explorando uma crítica mais contudente e focando fatos de uma trajetória obscura, menos retrógada e confusa, como foi o roteiro e a estética neste seu segundo episódio, que sucumbiu diante do desastre da mistura de fatos reais com uma suposta ficção, fundindo com lendas campeiras contadas em galpões numa roda de chimarrão, que restou do folclore do tempo da escravidão no Brasil.

Em Netto e o Domador de Cavalos teve a simbiose da lenda do Negrinho do Pastoreio com a Guerra dos Farrapos, tendo o general Netto (Werner Schünemann), como se fosse um velho mocinho dos memoráveis faroestes americanos perseguidor dos peles vermelhas. Porém, aqui, ele recruta os negros lanceiros tão polemizados pela história da Revolução Farroupilha, virando os mais novos heróis de um tempo outrora belicista, ajudando a libertar o sargento índio Torres (Tarcísio Filho), que é o mesmo que conta a história lendária na primeira pessoa, sendo ele um dos remanescentes de sua tribo em extinção.

O elenco é bom, mas desperdiçado e jogado fora impiedosamente em seus papéis pouco consistentes, como Zé Victor Castiel, Fernanda Carvalho Leite, Nico Nicolaiewski, Miguel Ramos, Nélson Diniz, Zé Adão Barbosa, entre tantos outros mal aproveitados. Elogios para a magnífica fotografia de Ivo Czamanski, desfrutando a beleza de um pôr do sol enfeitado por aves em voos simétricos migratórios, à procura de seus novos horizontes; bem como para a bela trilha sonora criada por Vitor Ramil.

Não foi feliz Ruas no seu roteiro confuso e indeciso, permeando a lenda com a história, num encontro lamentável e insatisfatório. Mas o pior do longa foi a péssima inspiração em A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, quando torturou Jesus ao extremo e avacalhou com as elipses cinematográficas necessárias, destruindo o bom senso e atingindo comercialmente os espectadores com rituais prolongados de agressões físicas, além dos pregos na cruz, fazendo o sangue esvair-se sem precedentes. Tudo isso se transfere para o a película de Ruas, que exacerbou na violência gratuita de intermináveis sessões de chicotadas em séries de 30 e 100 respectivamente, sendo contadas à exaustão, levando a náuseas premeditadas dos moribundos e indefesos espectadores, numa banalização vista poucas vezes no cinema.

O roteiro não tem ideais ou causas da revolução gaúcha, esquecidos voluntariamente, sem sequer mencionar ou lembrar no transcorrer do filme. O objetivo é a vingança dos negros contra os brancos poderosos, num maniqueísmo inverso e desproporcional, numa inversão de valores, levando aos píncaros da glória heroica justamente aqueles que foram as maiores vítimas dos massacres da guerra que durou 10 anos.

O diretor estava mais preocupado em mostrar uma vitória fictícia das minorias discriminadas no processo que gerou a batalha campal, numa euforia incompreensível diante de uma realidade fática e histórica contrária daqueles tempos de distorções e enfrentamentos dos republicanos com os revolucionários farroupilhas.

O filme busca uma saída mais pueril do que eloquente, diante das tolices apresentadas como verdades definitivas. Leva os espectadores chicoteados pelo excesso banalizante, para um final induzindo a uma justiça pelas próprias mãos, deixando claramente nas entrelinhas um ranço de moralismo, afastando-se de uma crítica mais profunda e reflexiva, deixando para quem sabe no próximo longa que encerrará a trilogia. Fica toda a expectativa para uma recuperação da lógica e da veracidade dos tempos de uma época conflitada pelas graves crises econômicas do centro do país com reflexos no Sul no século XIX.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Seleção de Filmes Bourbon (Minha Terra, África)













Minha Terra, África (White Material)

A diretora francesa Claire Denis que brilhou com Chocolate (1988) - não confundir com a comédia de Lasse Hallström (2000), com Juliette Binoche e Johnny Deep- e o perturbador e instigante Desejo Insaciável (2001), drama sobre a carne e seus impulsos, lança White Material, traduzido para o português Minha Terra, África, seu último trabalho, ainda sem tradução e com previsão para estreia no Brasil no final do ano, foi apresentado no último Festival de Cannes, com discreta recepção de público e crítica, propiciou assisti-lo no minifestival da Seleção de Filmes Bourbon, em sessões inéditas.

A película foca sua trama em Maria (Isabelle Hupert- sempre impecável e com irrepreensível atuação), uma fazendeira francesa branca que planta café num certo país da África em convulsão social. O longa francês tenta refletir os problemas sociais e as convulsões africanas, demonstrando os conflitos tribais e as disputas acirradas pelo poder nas conturbadas camadas de um povo em litígio com problemas raciais extremados, tendo o líder dos rebeldes se refugiado na casa da proprietária e recém-separada do marido André (Christopher Lambert).

Maria está na boca do vulcão com todos suas manifestas e dificuldades existenciais, vendo o sofrimento do filho, uma pessoa frágil e conflitada com o mundo externo, sem objetivo de vida definido, vivendo sistematicamente entre a mãe, o pai e o outro irmão paterno, fruto do novo relacionamento de André com uma mulher inconstante. A diretora lança mão de uma forma convencional ao mostrar os pedágios cobrados pelos rebeldes e acuados pelas milícias oficiais e paramilitares. Há uma efervescência brutal na busca pelo poder, com degolas, execuções sumárias e crueldades mostradas com certo requinte de perversidade.

Claire Denis mostra os negros recrutados para trabalharem na colheita do café, na fazenda de Maria, sob imensa tensão na região, mas não consegue se livrar de cenas apelativas e reflexões pouco imaginativas, sem maior densidade, fruto de um roteiro que banaliza a violência e tira o foco das reivindicações e dos dramas individuais e coletivosMinha Terra, África não chega a evoluir e a profundidade aguardada acaba por diluir-se, por falta de uma melhor e capaz firmeza na direção, embora com uma fotografia magnífica e com atuações razoáveis de um elenco que desponta com Isabelle Hupert em destaque, o longa naufraga e implode, num final melancólico sem inspiração.

A cineasta bem que poderia ser mais crítica, se deixasse o longa com menos perversão e focasse o resultado na luta inglória de um povo que busca um país de melhor qualidade, mas a plataforma reivindicatória é pueril e se dispersa na fragilidade e pouca lucidez da diretora que empolgou com Chocolate e Desejo Insaciável, mas agora dá mostras de falta de criatividade, ficando na mesmice e no trivial num filme comum.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O Profeta

















Instituições Falidas

O longa-metragem O Profeta parte de uma suposta fragilidade dos árabes, tendo no personagem principal toda iniciação e formação no mundo do crime, o jovem imigrante de 19 anos e analfabeto Malik El Djebena (Tahar Rahim), condenado a seis anos de reclusão. O comando da cadeia é de um veterano e intimidador mafioso da Córsega César Luciani (Niels Arestrup), que tem o controle prisional e o poder de mando sobre guardas e demais aprisionados.

O diretor Jacques Audiard de Um Herói Muito Discreto (1996) e o magnífico De Tanto bater, Meu Coração Quase Parou (2005), tem uma visão crítica da falência dos presídios, como aborda a ojeriza e o preconceito racial da França para com seus imigrantes na diversas cenas da película, deixa emergir o ódio e repúdio aos ditos forasteiros e considerados não nativos que buscam se estabelecerem em solo francês, que já fora visto de forma contundente naquele elogiável e desmistificador Bem-Vindo (2009), de Philippe Lioret, aprofundado com dignidade na busca pelo amor quase impossível num país em que a xenofobia está muito presente, deixa aflorar a discussão dos parâmetros de uma política de imigração. Sem esquecer do magnífico Ente os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, que além de analisar o núcleo familiar, dá uma aula de reflexão de xenofobia e racismo nos bancos escolares, servindo de microcosmo da sociedade adulta.

Lioret mostrou com clarividência uma hostilidade aos muçulmanos, considerados como sub-raça, já Audiard é mais brando, porém foca sua reflexão no sistema penitenciário corrupto e corrompido pela força do império financeiro do tráfico das drogas e da máfia dos corsos dominante naquela cadeia que deveria reformar, termina por formar com eloquência um delinquente, como uma verdadeira faculdade do crime organizado, funcionando em escalas de graduações como se fosse uma empresa planificada, onde o funcionário segue um Plano de Cargos (diretores, gerentes, administrativos, técnicos e o menos graduado na execução, caracterizado pelo jovem Malik, tendo no comando o veterano Luciani), para atingir os cargos mais altos e almejados pelo talento. Os mais fragilizados são humilhados e assassinados sem a menor clemência, como presas inofensivas.

Mesmo com a qualidade do cineasta francês, dois longas brasileiros refletem com melhor eficiência e relevância os problemas prisionais, como no esplêndido Carandiru (2003), dirigido com lucidez por Hector Babenco e a mini obra-prima Estômago (2007), talvez o melhor filme produzido sobre este tema em nosso país, na última década, com a surpreendente direção de Marcos Jorge, revelando todas as mazelas e falcatruas de um sistema corrupto e fragilizado por falta de uma política prisional capaz de recolocar na sociedade indivíduos que estiveram à margem de um estado de direito. Jorge critica e satiriza este sistema completamente falido, através deste drama moderno que envolve sexo, poder e gastronomia, em que os presos detêm o poder e o comando, atribuindo aos mais frágeis e não engajados tarefas subservientes.

O Profeta mostra o desequilíbrio pelo preconceito racial, através de uma falência dos presídios, conduzindo com algum esmero os contornos e dificuldades dos habitantes carcerários, inclusive com a cena da solitária, resgatada no memorável Papillon (1973), de Franklin J. Schaffner, com Dustin Hoffman e Steve McQueen fazendo papel-título do prisioneiro humilhado, comendo baratas e insetos, causando uma verdadeira catarse nos espectadores, num sistema selvagem e desumano na prisão de segurança máxima na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. As organizações criminosas também foram muito bem exploradas no visceral filme italiano Gomorra (2008), de Matteo Garrone, revelando as consequências para quem se rebela e ousa enfrentar os poderes da máfia.

Mas o prisioneiro Malik exercita-se e leva uma vida praticamente normal, exceto suas saídas para realizar práticas ilegais e dar fim a outros vilões encomendados pelo chefe corso, numa falha quase que imperdoável de Audiard, que não consegue transmitir o horror daquele lugar sem sol, insalubre e imundo. Também as cenas de delírios são artificiais, longe de um clima em que a culpa poderia atuar com mais força, por uma dor intensa e maior, através de uma perturbação psíquica que alterasse os movimentos e um raciocínio lúcido e lógico.

O filme é longo demais, passando de duas horas e meia, tornando-se exaustivo e cansativo pelo seu desenrolar e alternância gradual de movimentos com entradas para ações e enlaces dos grupos dominadores. Fica um clima de déjà vu, apesar do esforço reconhecido do diretor, peca por detalhes, como na falta de emoção, beirando a letargia em várias cenas. Não alcança o ritmo e objetividade como de Leonera (2008), do extraordinário filme argentino de Pablo Trapero; nem se aproxima dos resultados meritórios de Alcatraz (1979), de Don Siegel. Sequer pode ser comparado ao Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola, que veio dirigir depois Parte II (1974), concluindo a trilogia com a parte III (1990), dando um banho de qualidade nas cenas de execução pelas ruas da Itália, consagrado como a legítima obra-prima da cosa nostra.

Mesmo com algumas irregularidades e de uma estética já bem conhecida e batida nos cinemas, como prisioneiros numa cadeia, sendo fácil encontrar temas similares no cinema, o longa tem seus méritos indiscutíveis, alcança uma boa performance, embora fique devendo em muito para uma evolução de linguagem, revela algumas virtudes como em apontar os já contumazes preconceitos raciais da sociedade francesa e a hostilidade sem eufemismo contra os imigrantes, especialmente no que se refere ao mundo árabe. Se não é um grande filme, deixa alguma perturbação à arrogância e a fleuma de seu povo para com os imigrantes e referendando a falência do sistema prisional.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Origem



Perigos da Mente

O instigante longa-metragem A Origem, dirigido com habilidade por Chistopher Nolan, o mesmo de Amnésia (2000), O Grande Truque (2006) e Batman- O Cavaleiro das Trevas (2008), inova numa metalinguagem cinematográfica de forma satisfatória na sua estética, abordando os perigosos e tortuosos caminhos da mente humana, nos seus intrincados labirintos ainda não descobertos totalmente pelo homem, numa combinação de suspense e entretenimento, assumindo de vez o cinema-espetáculo.

O filme tem como mote inicial a perda ou busca da esposa Mal (Marion Cotillard) pelo seu marido que é segurança da mente Cobb (Leonardo DiCaprio- em mais uma grande atuação, mostrando maturidade e dramaturgia em grau de quase perfeição), que tem como missão principal plantar ou inserir uma ideia na cabeça do herdeiro milionário Fischer (Cillian Murphy), tendo como inarredável parceiro Arthur (Joseph Gordon-Levitt).

A Origem é uma mescla de sonhos e realidade, mas não no sentido trivial e correlato da palavra. É o sonho do sonho e, por vezes, em dosagem multiplicadora que levam o espectador a ficar atento em todos os detalhes e sequências alucinantes imprimidas pelo diretor, revelando criatividade e inteligência acima da média, longe da mediocridade que assola a maioria nos filmes comerciais, numa bela demonstração de audácia, ao juntar a reflexão com o espetaculoso, resultou neste exemplar magnífico de criação cinematográfica.

A falsidade e a ironia estão bem presentes na A Origem, tendo desdobramentos em várias frentes, com cenas típicas de alegorias e metáforas, como nas investigações e espionagens, num tom irônico e até mordaz de bem-vindo aos EUA, na cena do reencontro com a prole que julgava perdida e distante num mundo imaginário dos sonhadores, porém sem a presença desta vez de supostos terroristas, que é um avanço para os críticos mais atilados.

Obviamente que não é um um filme fácil, pois tem na sua hermeticidade o condão para sua fluidez, que com o desenrolar da trama, passa a ser palatável com a desarmonia das cenas, mas que irão se encaixando pelos seus 148 minutos. As inúmeras tentativas de saídas fáceis para as situações apresentadas, logo se dissipam num roteiro bem elaborado. Cabe uma pequena restrição à obra, como por exemplo alguns penduricalhos que poderiam ser dispensáveis na edição e montagem, tal qual a batalha da neve e aqueles personagens moribundos caminhando no teto, com truques já manjados e que não somaram em nada. Efeitos especiais à parte, abusam da tecnologia de trucagens realizadas por digitalização. Apesar do pequeno reparo, é inegável ser um filme essencialmente de autor.

O lado psicanalítico é bem expolorado por Nolan, como na hipnose disfarçada de inserção mental, atingindo um transe extraordinário, levando Cobb e seu assistente-comparsa a diversas e maravilhosas percepções e desvirtuamentos de suas perenes e obstinadas revoluções mentais, visando conclusões, embora paradoxalmente todas inconclusas e dúbias na esfera analítica e perceptivas. O transe de Cobb com Mal e sua luta pela volta ao passado ou origem é alucinante, beirando a catarse sentimental de um futuro que remete ao presente, deixando-o sem saber o que pretende na realidade, numa providencial confusão da realidade com o imaginário sonhado.

O reencontro com a presa já envelhecida e o retorno ao avião, num plano inicial, burlando o equilíbrio e remetendo ao fim, leva à loucura visceral daquele ser perdido nos seus objetivos, já metamorfoseado na criatura que tem agora o obsessivo regresso ao estado quo. Tem nas viagens pelos labirintos mentais mostrando os perigosos e assustadores caminhos, numa descoberta magnífica como na cenas das duas crianças sem rosto no início, mas em seus estados de extrema candura ao se ver os rostos angelicais correndo nos jardins verdejantes da residência, faz alusão ao trepidante filme O Iluminado (1980), de Stanley Kublick, pelas visões e alucinações do passado daquele hotel.

Mas Colan também busca sua inspiração maior nos filmes do mestre David Linch, como Cidade dos Sonhos (2001) e Império dos Sonhos (2006), sem o clima fantástico do mestre dos mestres, evidentemente, num exercício claro da magia ilusória do pensamento de personagens visionários criados com maestria pelo velho Linch. Também há referências a Brilho Eterno de Uma Mente (2004), de Michel Gondry, neste até com superioridade; ainda a ser citada a maravilhosa obra-prima O Ano Passado em Marienbad (1960), do genial Alain Resnais; novamente aparece Stanley Kublick, desta feita com 2001- Uma Odisseia no Espaço (1968), bem como existe o universo do imaginário fantástico do terror psicológico de O Anticristo (2009), de Lars Von Trier, que abordou as divagações pelo universo da culpa e responsabilidade, mesclando com a loucura imposta pela irresponsabilidade da terapia do marido terapeuta. Dá para se dizer que A Origem é transcendental no seu todo e perturbador na sua proposta, pelos requintes de irracionalidade e perversão, onde um mundo cada vez mais competidor e tresloucado é questionado na entrelinhas, como na metáfora do filho que busca a herança do patriarca e recebe do cofre a revelação escrita para que seja apenas ele mesmo e não queira ser seu pai.

A inevitável busca de um tesouro em segredo e as supostas sessões de tortura para revelar a senha codificada, assim como a tentativa ferrenha de Cobb para se libertar de um pacto fatídico enlouquecedor, conduzem o filme para um final inesperado pela tensão no ponto certo, embaladas pela lindíssima canção de Edith Piaf "Non, Je Ne Regrette Rien" (não me arrependo de nada) - homenageando Marion Cotillard que interpretou a cantora num longa de 2007 e interpreta Mal como a esposa perseguida e perseguidora- como mola propulsora que conduz e dá o tom da dramaticidade com requintes de uma pseudoficção, se constrói e se revela num dos mais eloquentes filmes deste ano, tornando-se obrigatório pela sua temática e metalinguagem deste cineasta que faz um mergulho no inconsciente desconhecido de um universo inexplorado, como o dos sonhos e dos devaneios tortuosos da mente, afirmando-se como um dos mais promissores e admirados da nova geração, este londrino nascido em 1970, que faz carreira no cinema americano.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Uma Noite em 67



Histórica Noite

A grande final da 3ª. edição do Festival da Record, realizada na noite de 21 de outubro de 1967, é retratada no documentário Uma Noite em 67. Dirigido com simplicidade e sem perfumaria por Renato Terra e Ricardo Calil, sendo uma boa surpresa o trabalho destes neófitos diretores. O documentário reabilita e renova aos espectadores os memoráveis festivais de música popular brasileira na antiga Rede Record de Televisão, palco que serviu para lançamento de artistas iniciantes e promissores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que mais tarde formaram o Movimento Tropicália ou Tropicalismo, com Gal Costa e Maria Bethânia, onde realçava-se as roupas coloridas e diferentes do que ditavam a moda na época, tendo nos comportadinhos Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo seus fiéis seguidores, trajando smokings e com aparências de bons moços dentro de uma formalidade para as apresentações noturnas impostas.

No transcorrer do filme se anunciam os mocinhos, a heroína, os ditos homens maus, tal qual uma luta livre ou bom faroeste. Caeteno revela que sua música Alegria, Alegria, onde menciona a Coca-Cola, Brigite Bardot e bombas não tinham conotações políticas, tendo composto porque era moda falar tais palavras e buscou inovação na guitarra de um grupo argentino o equilíbrio para a canção, redundando no extraordinário sucesso até hoje, solicitado ainda em seus shows. Nos relatos e na confissão de Gilberto Gil, fica evidente na juventude sua ojeriza ao público e seu estado de pânico ao entrar no palco para defender a canção Domingo no Parque, juntamente com o grupo Os Mutantes, tendo seus componentes, inclusive Rita Lee e Arnaldo Batista, forte influência e clara alusão aos Beatles, nos seus cabelos com franjinhas na testa.

Chico Buarque apresenta com o conjunto MPB4 a bela canção Roda Viva, mesmo afirmando que não havia protesto, claramente se percebe nas entrelinhas seu desabafo, tanto é que faz menção a um general que lhe diz "que ele só compõe porcaria", bem como era chamado de o garoto do smoking, rotulado assim pela sua maneira de vestir-se. Ficou sozinho em defesa da música popular brasileira contrário aos Tropicalistas da Bahia. Já Edu Lobo, o outro bom mocinho, foi o grande vencedor deste festival com Ponteio, coadjuvado por Marília Medaglia, observa e reflete que "na realidade eram como cavalos, pois havia apostas para quem iria ganhar os festivais".

Irônica ou propositalmente, na estrofe de Ponteio, havia referências a Sérgio Ricardo que quebrara o violão e jogara na plateia, com "jogaram a viola no mundo" e "quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar". Mera coincidência ou pura armação dos realizadores do Festival? Eis a questão trazida ao debate, que fica sem resposta, tendo a negativa veemente dos organiadores do evento. O que é fato é a estrondosa vaia dirigida ao compositor Sérgio Ricardo, que tentava apresentar a música Beto Bom de Bola. Num lance memorável, extremamente nervoso, depois de pedir e implorar várias vezes para deixarem cantar sua melodia, sob estrondosa vaia, quebra literalmente o violão na cadeira e arremessa na plateia, com força e ódio, numa explosão de revolta, entrando para antologia dos fatos pitorescos dos festivais. Hoje, mais velho e dedicado à pintura, não se arrepende e faria de novo.

O documentário mostra a passeata dos movimentos contra a guitarra elétrica, porque ao vir da Europa era amaldiçoada e execrada pelos simpatizantes do comunismo contrários ao capitalismo chamado de selvagem. O jornalista, escritor e crítico musical Sérgio Cabral- pai do atual governador do Rio de Janeiro- revela todo seu arrependimento e até acha graça daquela idiotice outrora. Havia uma ideologização pela busca de um novo movimento, como aconteceu com a Tropicália, que conflitava com a MPB, a Bossa Nova e a Jovem Guarda. Uma grande efervescência musical contrapondo timidamente com o ápice da ditadura militar daquele ano. Os tempos eram duros e não poupavam ninguém, mas os festivais pululavam e incendiavam o povo nas grandes noitadas na televisão, comandados por Reali Júnior e Cidinha Campos, arrebatando audiências fantásticas no embalo musical, pois as novelas não tinham o poder de persuasão e contundência dos dias de hoje.

O delírio do público era evidente e se dividiam em vaias e ovações. Eram períodos de uma juventude sufocada pelo sofrimento do silêncio, corroídos pela mordaça que impedia a livre manifestação. Explodiam suas gargantas em vaiar como válvula de escape e ecoavam em gritos de contrariedade contra um regime autoritário pela opressão que anestesiava aquela geração, como metáfora da liberdade. Os próprios artistas se diziam atordoados e visivelmente desconheciam a realidade e o momento político e social em seu país naqueles anos de chumbo. Roberto Carlos surge com Maria, Carnaval e Cinzas, já dando mostras do reinado que iria assumir, naquele sambinha com pouco conteúdo, mas de muito embalo.

Uma Noite em 67 resgata uma época em que um evento musical se tornaria símbolo e paradigma de uma geração de jovens amordaçados, tendo no violão quebrado e jogado naquelas pessoas que teimavam em constranger seu intérprete, como a redenção de jovens sem voz para protestar politicamente. Porém, buscam nos gritos contra o artista a simbologia para lavar a alma e expulsar todos os demônios entranhados nos subconscientes reprimidos. Um filme para todas as gerações, tendo como marco histórico a música servindo de fresta para a libertação das amarras de uma juventude anestesiada por uma tirania antidemocrática que assolou todos os brasileiros naqueles anos, ficando na tela como reflexão mais aprofundada.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

À Prova de Morte



Homenagem aos Maus Filmes

Quentin Tarantino que se consagrou com Cães de Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994), Kill Bill vol. 1 (2003), Kill Bill vol. 2 (2004), e recentemente com a assumida e possível obra-prima Bastardos Inglórios (2009), agora homenageia os filmes de categoria B e C, colocando na planície da diversão atores e atrizes que buscam a fama. A inspiração vem do seu longa Jackie Brown (1997), com as mulheres reagindo e buscando a vingança numa força descomunal ao detrator corroído pela aversão ao sexo feminino.

Tarantino é um obsessivo pelas realizações de subterrâneo, pois cresceu investigando as locadoras e assistindo tudo que lhe caía na mão, recicla agora este tipo de produções baratas e ruins, de truques fáceis, temas de vulgaridade expressiva para prestar uma gloriosa homenagem com sua penúltima obra À Prova de Morte (2007), com seu parceiro Robert Rodriguez um duplo longa-metragem que posteriormente se dividiu em dois. Coube a Rodriguez o fracasso com Planet Terror, no projeto Grindhouse, exibido originalmente no Festival de Cannes em 2007, com 127 minutos.

À Prova de Morte tem na estética uma alusão explícita, incluindo os defeitos do gênero, como a cor amarelo/alaranjado num contraste desbotado repleto de riscos nos personagens, os erros de continuidade, com diálogos equivocados e cheios de mesmices, não podendo faltar o tradicional banho de sangue, pelas corridas alucinadas de carros por estradas sem asfalto, muita velocidade e choques violentos e devastadores, com socos e porradas na cara ao melhor estilo.

A narrativa da perseguição do dublê Stuntman Mike (Ken Russel) que está ótimo como um autêntico serial killer na insana perseguição para matar belas garotas em dois atos, sendo bem sucedido no primeiro, predominando uma tensa busca desenfreada com seu carro "envenenado"; mas sofrendo um revés estrondoso no segundo ato, diante da reação espetacular das garotas, em planos de ação e transtorno pelo encalço nas estradas desertas de grande qualidade.

Cabe frisar que as perseguições que lembram os filmes do gênero, como o clássico dos anos 60 Sem Destino (1969), dirigido por Dennis Hopper, com atuação impecável de Peter Fonda; o outro é um cult do gênero, o notável O Encurralado (1971 ), primeiro longa-metragem de Steven Spielberg, nas antológicas cenas de perseguição, por uma estrada empoeirada, de um caminhão assustador tendo na direção um motorista sem imagem, correndo loucamente atrás de um homem de negócios dentro de um carro esporte, com a única intenção de matá-lo impiedosamente.

Tarantino aborda com sabedoria a busca da fama por atrizes neófitas que estão se projetando no mundo do cinema, repletas de sonhos e esperanças, ainda românticas no início, mas já na cena final buscam a igualdade completa com os homens, assim como no filme Thelma & Louise (1991), dirigido magnificamente por Ridley Scott, retratando a busca da liberdade de uma mulher casada em conflito com seu marido, que resolve viajar com sua melhor amiga numa aventura fascinante.

O cenário "retrô", numa volta ao passado com seu estilo de sugestão para recuperar as glórias de outrora nos bares esfumaçados de beira de estrada, com muita bebida num ambiente de filmes de faroeste. Tarantino aparece na primeira cena num bar e depois em outras, tal qual Alfred Hitchcock também dava os ares da graça em seus filmes por alguns segundos. Em seguida, para mostrar que ele estava ali presente já projetando sua marca registrada, vem a cena da perseguição do maníaco destroçando o carro que tinha como alvo, com muito sangue e membros superiores e inferiores jogados no chão, sem transparecer violência gratuita, causando ironicamente até alguns sorrisos na plateia, diante do inusitado.

O diálogo do xerife com seu assistente no hospital, após intimar a médica sobre o estado de saúde do paciente perseguidor revela os problemas e as fragilidades do sistema, e em especial da justiça, no julgamento com poucas provas. O diretor joga na plateia a sensação de impunidade e fraqueza dos órgãos repressores com formato oficial.

A cena da perseguição das jovens chamando o maníaco de bastardo por várias vezes, já antevê o próximo filme que viria arrasar: Bastardos Inglórios. Já o tratamento dado ao serial killer demonstra que em tais situações, sem ser fascista, se resolve de modo próprio, invertendo a ordem dos fatores, passando de caçador para caça, vem revelar a fraqueza comovedora daquele homem com desvio comportamental, tal qual previsto na cena em que se aproxima das garotas, é classificado de "possuidor de pinto pequeno", afasta-se imediatamente com seu carro turbinado esbanjando truculência.

Tarantino se diverte com as produções ruins, ridiculariza o sistema, através do tributo aos filmes B e C, tanto pelo cenário com cores pigmentadas e desbotadas, presta sua homenagem aos diretores que tanto aprecia deste gênero, como Dario Argento, Don Siegel, George Romero e Russ Meyer, diante dos heróis fortões de rostos cortados com cicatrizes enormes. Se não é seu melhor longa, há a admiração e os respeito venerado aos espectadores que se criaram- assim como diretor- assistindo películas menores e de poucos recursos, com atores ainda desconhecidos na busca da consagração, cheios de imaginações e suspiros por um estrelato no ápice da carreira. Impossível deixar de gostar e se imaginar assistindo aos filmes tributados, como numa volta ao passado, todos fazem seu mea-culpa, ou saem gostando ainda mais do que vira nas décadas de 60 e 70.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Educação



Dores do Crescimento

A diretora dinamarquesa, de 50 anos, Lone Scherfig tem no tédio da adolescência o cerne do drama Educação, com a busca imediata para a passagem ao mundo adulto. A trama tem no ponto principal a transição da bela e inteligente jovem adolescente de 16 anos Jenny (Carey Mulligan), em 1961, filha única de um casal classe média baixa, moradora no subúrbio de Londres, estudante de latim e celo (espécie de violoncelo).

A película é uma adaptação do escritor Nick Hornby de um artigo da jornalista Lynn Barber, intitulado como autobiográfico, debruçando-se na vida entediada de Jenny que tem diariamente seus pais alimentando o sonho de estudar em Oxford, uma pretensão superior para os ingleses, como uma premiação de recompensa pela labuta da persistência como seu fim maior, principalmente pela sua condição de pessoa pobre que a conduz para os estudos, objetivando uma vida melhor. Surge num dia de chuva torrencial, na saída escola, David (Peter Sarsgaard) um playboy na acepção da palavra, de origem judia, charmoso, bonitão e sedutor, com mais de 30 anos, cosmopolita e requintado, mas de profissão duvidosa. Joga todo seu charme e sedução, com a assessoria inestimável de um casal de amigos bons vivants.

David não é uma pessoa confiável, sua situação civil é complicada, logo se aproxima dos pais de Jenny e convida a garota para conhecer a Faculdade de Oxford, simulando uma sessão de autógrafos com o autor preferido da garota, mas com sua anuência. Abusa da tenra idade e justificável ingenuidade, a leva para concertos em teatro, dançar em boates no glamour da noite. Em seguida, ao completar os 17 anos, prestes a perder a virgindade, pois assim estabelecera como meta de vida e transição para o mundo adulto, é convidada para ir a Paris, seu sonho e fantasia de menina que já se imagina na Cidade Luz, pois já balbucia algumas frases em francês. O deslumbramento é completo ao romper com o formalismo de sua educação, descobrindo o outro lado da vida, mas a ficha começa a cair, diante dos negócios escusos do namoradinho com imigrantes negros em bairros pobres e promíscuos, com invasões em moradias de baixa renda.

A mudança da vida adolescente para adulta tem no clímax da descoberta das falcatruas seu ponto primordial de discórdia e a dor da transição de Jenny para um mundo ainda desconhecido e com as mazelas que está descobrindo de forma abrupta. Há na cena da descoberta do segredo de David toda a revelação, quando pergunta de maneira dramática aos pais e os questiona, colocando ser uma pessoa inexperiente uma justificativa para sua ingenuidade no cerco feito pelo Don Juan, inquirindo-os que não poderiam ter se omitido para uma situação de futuro de uma vida financeira estável e como poderiam ter deixado se ludibriarem tão facilmente.

Pode ser citada ainda outra cena marcante, aquela do pai levando chá com biscoitos no quarto para a filha abalada psicologicamente pela perda, buscando a reconciliação paternal. Ficaram as acusações e cobranças mútuas, estando a mãe omissa com a filha que quer pular etapas e agora sente toda a dor de seu imaginário em ebulição e se sentindo perdida no nefasto e conturbado novo mundo adulto agora em crise.

Educação traz reflexões de três filmes franceses notáveis e significativos da adolescência, um ainda em cartaz O Pequeno Nicolau (2009), dirigido magnificamente por Laurent Tirard; outro é o sempre atual Os Incompreendidos (1959), obra-prima do mestre François Truffaut; e o perturbador Entre Os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, abordando a disciplina e os limites irrefutáveis como essência de crescimento humano.

Também há referências a outros notáveis filmes, como de Christophe Honoré, A Bela Junnie (2006). Não se pode esquecer ainda do magnífico O Casamento de Rachel (2008), dirigido por Jonathan Demme. Outros filmes significativos mas posteriores foram recentemente passados no Festival Varilux de 2010, Hadewijch (2009), de Bruno Dumont e O Refúgio (2009), de François Ozon, tanto pela candura como pelas cobranças junto aos pais pelos erros e poucos acertos, com consequências desastrosas em decisões precipitadas, onde o microcosmo familiar está presente pela omissão e ausência constantes.

A diretora de Educação não chega a aprofundar-se como se poderia imaginar para a obtenção de um resultado singular, deixando as reflexões e os questionamentos de transição de mundos diferentes e angustiantes, como da adolescência para o adulto, numa linearidade de um roteiro básico, que anda aos percalços, sem uma abordagem profunda que o tema merece, com um resultado razoável, numa visão pouco crítica e com discreto ranço de moralidade nas entrelinhas.


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Os Incompreendidos













Continua Atual

François Truffaut com esta obra-prima Os Incompreendidos talvez não soubesse que estaria dando o passo inicial para a Nouvelle Vague em 1959. Filme que virou o marco desta nova escola francesa de se realizar cinema, a nova onda criada para revolucionar a cinematografia da França e mexer com os produtores desta indústria, onde o conteúdo e a reflexão estavam acima das produções vultosas e sem objetivos maiores que não fossem as arrecadações e seus lucros. Neste ano comemora-se 51 anos de existência profícua e bem-vinda. Além de Truffaut, um jovem crítico da poderosa revista que era uma verdadeira bíblia Cahiers du Cinéma, participaram também deste movimento Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette, como os mais destacados e consagrados.

O longa Os Incompreendidos continua atual e rejuvenescido pelo seu tema instigante como da adolescência com as relações familliares de um garoto que é expulso de casa e levado pelo padrasto até um Centro de Correção de Menores. Qual seu crime? Ser displicente em sala de aula, tal qual Clotário (na maiúscula atuação de Victor Carles) do inesquecível O Pequeno Nicolau (2009), de Laurent Tirard, que buscou e bebeu na inspiração do mestre Truffaut. O menino indisciplinado de Os Incompreendidos levou mais longe suas peraltices, inclusive pequenos furtos com coleguinhas de aula, sendo que a máquina de escrever manual surrupiada foi a gota dágua para sua mãe e o pai adotivo, tomando a drástica decisão de entregá-lo na delegacia policial distrital. Sofreu todo tipo de humilhação, até ser mandado para o reformatório.

A reflexão abordada por Truffaut é pontual ao examinar o microcosmo familiar com extrema sabedoria e demonstrar as cicatrizes deixadas como a mãe da garoto que não tem tempo para conversar ou discutir sobre as atividades escolares, tendo em vista que seu precioso tempo estava ocupado nas aventuras extraconjugais após o almoço, tal qual A Bela da Tarde (1967), do genial Luís Buñuel. Já o pai não biológico, mas afetivo por vezes, pois se esforçava bastante, tentando passar a imagem de um campeão e boa gente, apesar das piadinhas manjadas.

O universo das frustrações e humilhações já vinham desde os tempos da escola, onde o professor usava de métodos de rigor, inclusive o físico, como empurrões, o puxão de orelha literal como na acepção da palavra, achincalhamentos verbais inomináveis, quando havia discordância com o mestre. Os métodos tribais também se estendia no reformatório, como tapa no rosto e subtração da comida ao infrator que comesse o pão antes da refeição, embora a fome estivesse remoendo o estômago.

A violência exacerbada como método repressor que era característica basilar e considerada como correta pela pedagogia dos anos 50 é coloca em xeque e se debatia com insistência. Já hoje refutada veementemente como a clássica "palmadinha pedagógica", são elementos fundamentais e que inserem esta obra de Truffaut como uma autêntica obra-prima, que viria suceder dezenas de outros filmes sobre a repressão e os castigos violentos nas escolas e os centros de recuperação de jovens.

Do próprio Truffaut viria mais tarde outra obra-prima Na Idade da Inocência (1976). Mas recentemente talvez ninguém explorasse com tanta galhardia e qualidade como Laurent Cantet, com Entre Os Muros da Escola (2008). Já antes Ives Robert, com sua notável comédia dramática explorou com acidez, através do longa Guerra dos Botões (1962). Christophe Honoré foi magnífico com A Bela Junnie (2006). Porém, Jean Vigo celebrizou a rebeldia escolar com Zero de Conduta (1933), com outro extraordinário filme, possivelmente o primeiro a tratar com toda a veemência sobre transgressão e opressão.

As sequelas são apresentadas, expondo as entranhas e vísceras de forma exposta e contudente. O questionamento da uma penalização dita pedagógica mas incivilizada, com métodos antiquados e oriundos dos tempos dos homens das cavernas, estão claros e são permanentes nas entrelinhas desta película. Estão ausentes o apreço pelo carinho, o diálogo, o amor, a ternura, numa evidente crítica ao sistema e aos métodos superados de uma sociedade que vislumbra na agressão e na falta de diálogo seus elementos básicos e frágeis, com reflexo numa juventude à mercê de um objetivo mais digno e eloquente com seus anseios.

Os Incompreendidos só poderia ter sido dirigido por um mestre como François Truffaut, de notável sensibilidade ao realizar em 1959 este vigoroso filme que se sustenta no tempo e continua novo e atual. Ou pelo seu tema instigante sobre a adolescência, bem como por ser o longa precursor que tanto embalou os críticos e cinéfilos, emerge como uma erupção vulcânica que cimentou definitivamente a Nouvelle Vague.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Festival Varilux Cinema Francês (O Pequeno Nicolau)



O Pequeno Nicolau

A cinematografia francesa é especialista em realizar filmes sobre crianças. A abordagem quase sempre vem marcada pelas traquinagens gostosas, mostrando uma infância sadia, afastando o lado precoce e debruçando-se sobre os problemas de maneira eloquente, sem as basbaquices encontradas em realizadores americanos que preferem elevar num patamar superestimado ou subestimar os pimpolhos.

Dá prazer em assistir a este belo longa-metragem infantil O Pequeno Nicolau, dirigido exemplarmente por Laurent Tirard, um ex-jornalista da revista de cinema Studio Magazine, que dirigiu As Aventuras de Molière (2007), com um roteiro impecável de Alain Chabat e René Goscinny, uma fotografia perfeita de Denis Rouden, com elenco de primeiríssima qualidade da garotada, bem assessorados por Valérie Lemercier, como a mãe de Nicolau; Kad Merad como o pai do menininho; e a bela professorinha Sandrine Kiberlain, de atuação magnífica também como uma professora do interior da França em Mademoiselle Chambon (2009). Goscinny foi quem escreveu as histórias em quadrinhos e também é um dos criadores de Asterix e sua turma, publicadas originalmente de 1956 a 1964 na França, com o desenho de Jean-Jacques Sempé.

A trama mostra Nicolau (Máxime Godart) levando uma vida pacífica com seus amiguinhos do colégio, sempre atentos para aprontar uma boa sacanagem com alguém ou entre eles mesmos. Tudo é perfeito e maravilhoso no mundo encantado, até que um belo dia ouve a conversa do pai com a mãe pela porta entreaberta e coloca na cebecinha que terá um maninho e será posto de lado e que seus pais não terão mais tempo para ele. Acaba quase que surtando de pavor. Cisma que será abandonado definitivamente na floresta como o Pequeno Polegar. Tenta conquistar o velho amor maternal e paternal, fazendo um lobby para demonstrar que é imprescindível naquela casa. Mais desagrada do que agrada. Surge a ideia de fazer desaparecer com a criança que ainda nem nasceu, montando com seus amiguinhos várias estratégias e planos mirabolantes para um sequestro relâmpago. Assim é Nicolau, um menino bonito e desconfiado, com sentimentos de rejeição e com a floresta atormentando seus sonhos e com o estigma do imaginário irmão perturbando seu cotidiano até então intocável, fruto da conversa com o coleguinha frustrado Joaquim (Virgile Tirard) que tem fantasias que afloram e rondam sua mente.

Os planos para fazer sumir o nascituro é muito engraçado e por vezes chocante. Do painel de amiguinhos surge o "gordinho rechonchudo" sempre comendo e com tiradas satíricas de bom gosto. Outro garoto que se destaca é o intelectual, com boas ideias e um planejamento de dar inveja. Tem o "nerd", também reconhecido por ser "CDF" ou "dedo-duro", com seus imensos óculos ridículos de armação quadrada, aquele que tudo sabe e está sempre pronto para entregar um colega em aula para a professorinha simpática, até que num dia de azar é substituída temporariamente por uma professora durona, que logo faz o falso sabichão entrar em crise existencial, terminando por conhecer o castigo pelas mãos de Clotário (Victor Carles), de desempenho notável, roubando literalmente as cenas quando surge na tela, diante de sua personalidade com lapsos de memória, distraído e dorminhoco em aula. Esta cena é reveladora e sintetiza como numa alegoria os meandros do civilizado, bom caráter e humilde contrastando com a prepotência, egoísmo e subserviência.

Outras duas cenas emblemáticas. Uma, quando o ministro de Educação faz uma pergunta e um silêncio sepulcral se estabelece na sala, sem haver nenhum piscar de olhos dos garotinhos, revelando a síntese da repressão, pois os alunos foram orientados anteriormente para não se manifestarem, surgindo a opressão clássica. Em outra cena é sugerido o castigo pelo educador ao impagável Clotário, símbolo da distração e rebeldia às normas comportamentais de estilo, para escrever uma frase de retratação por mais de 200 vezes. O pseudoeducador ajuda e termina por redigir a maioria delas, pois há pressa em ir embora, revelando o simbolismo de uma latente corrupção nos bancos escolares.

Os pais de Nicolau são interesseiros e grotescos, o pai é o legítimo puxa-saco do patrão, servindo de capacho para alcançar um posto mais elevado na empresa, embora seja um bonachão; a mãe é uma dona de casa, que fustiga o "amado" o tempo todo para que ele obtenha na marra uma promoção e melhore sua condição financeira. Só vê dinheiro na sua frente, planeja um jantar com o empresário e sua esposa, redundando num fiasco monumental, embebedando-se até cair por coma alcoólico, desaba com sua falta de civilidade. Para complicar um pouco mais o casal, tem o vizinho bisbilhoteiro que está sempre na cerca sem muro, ouvindo conversas indesejadas ou desejadas e fofoqueando.

O Pequeno Nicolau é um filme sobre crianças, mas para as crianças e os adultos. Tem como similares e referências duas obras-primas de François Truffaut, sendo uma o precursor da Nouvelle Vague, Os Incompreendidos (1959), e a outra Na Idade da Inocência (1976), de François Truffaut, drama mostrando a transição da infância para adolescência vista pela ótica de dois meninos. Outro memorável filme sobre a infância é O Balão Vermelho (1956), de Albert Lamorisse, fábula infantil do menino que solta o balão de um poste em Paris e dali para frente é seguido pelo objeto, sofre as chacotas dos mais velhos e dos adultos. Já em 1953, com o média-metragem O Cavalo Branco, Lamorisse fez outro filme indiscutível e magistral sobre infância, abordando um garoto que queria capturar um cavalo selvagem e disputava-o com vaqueiros adultos com a mesma intenção. Outro filme extraordinário sobre a infância vem do Irã, com direção de Jafar Panahi, O Balão Branco (1995), sobre uma menininha que quer comprar um lindo peixe dourado e gordinho, mas seu irmão tenta ajudar numa busca incessante pelo dinheiro, apronta algumas estrepolias pelo caminho.

Já nas cenas de sala de aula lembram em muito outra obra-prima francesa Entre os Muros da Escola (2008), de Lurent Cantet, sobre os reflexos da escola na sociedade perdida e desorientada, questionando os professores de ensinar para quem? Para que? A mostra da transgressão e a a capacidade da escola e dos docentes, bem como a sociedade e o microcosmo familiar, com a perda da energia em determinadas circunstâncias. A condensação nas salas de aulas de alunos conflitados e tensionados. Também a similitude com A Guerra dos Botões (1962), comédia dramática francesa de Yves Robert, numa sátira maravilhosa à guerra dos adultos, tendo como dois líderes estudantis de duas cidades adversárias, que se propõem a brigar e arrancam os botões dos casacos e confiscam os cintos, para que os pais os castiguem.

O longa tem a fantasia infantil nesta magistral obra, demonstrando toda espontaneidade e ingenuidade das crianças, nos seus devaneios delirantes de suas ideias e invenções dignas de pessoas ainda em formação, com um futuro que lhe causam dúvidas e um certo receio, vendo fatalismo até mesmo no nascimento de um irmão. Há as frustrações oriundas até do sexo do recém-nascido, demonstrando a insatisfação das pessoas sempre por algo que não está ao alcance próximo, mas que poderia ser simplificado, característica típica do ser humano e sua busca eterna pela realização pessoal ou pelo objetivo indefinido e distante. Mas Nicolau chora na última cena com a surpresa que lhe aguarda, pensando que nunca mais poderá ser feliz, deixa sua frase otimista e reflexiva nesta singular película: "Quando eu crescer, vou fazer as pessoas rirem."

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Em Teu Nome



Sonolenta Revolução

O diretor gaúcho Paulo Nascimento é um obstinado e trabalhador pela causa do cinema, especialmente no que se refere aos fatos e acontecimentos ligados ao Rio Grande do Sul. Sua trajetória é louvável pelo esforço e capacidade da dinâmica de tentar sempre, mesmo que seus produtos sejam refutados ou rejeitados pelos críticos e pelo grande público. Assim foi em Diário de um Mundo Novo (2005) e o decepcionante Valsa para Bruno Stein (2007), fracassos totais de público e hostilizados por boa parte da crítica especializada. Depois veio o filme infantil A Casa Verde (2009), sem receptividade dos espectadores, estreou em abril deste ano e logo saiu de cartaz, com passagem meteórica pelas salas, soçobrando como os anteriores, pela falta de criatividade de um produto melhor.

Finalmente chegou o tão esperado Em teu Nome, uma cinebiografia baseada na vida do jovem estudante de engenharia e ativista político, de origem humilde, nascido em Passo Fundo e hoje juiz da Justiça Militar gaúcha, João Carlos Bona Garcia (Leonardo Machado). Preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), logo após o Golpe Militar de 1964, por envolver-se com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que tinha seus ideais baseados na doutrina comunista de Che Guevara e Fidel Castro, sendo seu mentor e líder o capitão Carlos Lamarca, que veio liderar o célebre sequestro do embaixador suíço Giovanni Eurico Bucher, trocado por um grupo de 70 presos políticos, entre eles o jovem Bona, no auge da ditadura comandada pelo truculento general Garrastazu Médici, que estava na presidência do país. O longa se arrasta de forma sonolenta, mostrando as passagens pelo exílio de Bona e sua companheira Cecília (Fernanda Moro), pelas capitais Argel, Paris e Santiago do Chile, secundados pelo professor (Nelson Diniz) e sua namorada (Sílvia Buarque), o fiel escudeiro (Sirmar Antunes) e Cesar Troncoso que brilhou no filme uruguaio O Banheiro do Papa (2007), com atuação destacada e eficiente. Também no elenco Marcos Paulo como um delegado torturador e sádico.

O roteiro é bem pragmático quase simplório, parte do assalto a um carro por dois universitários ligados a VPR. Mostra a aproximação na faculdade de uma garota mimada e confusa a Bona, logo se apaixonam e voltam a se encontrar no exílio, passam por muitas dificuldades financeiras e saudades do Brasil, nascem os filhos e a vida fica ainda mais complicada para o casal. Há a incipiente passagem pela Ilha do Presídio de Bona e seus companheiros , as visitas da namorada, mas com o sequestro do embaixador suíço, que vem como tábua de salvação, Bona é banido para o Chile em 1971 com outros 69 presos políticos. Peca por muitas obviedades e singelezas, como o interrogatório artificial, embora o delegado fosse um sádico, as cenas estão longe do realismo, ficando na periférica demonstração de ausência de terror, ou se aproximando mais de uma conversa informal. Outro pecado capital está na montagem e na edição, existindo vária cenas de som posteriores as imagens passadas com diálogos soltos, como se fosse um delay.

A direção é frouxa e Leonardo Machado não chega a convencer em seu papel principal, embora não seja um mau ator, fica devendo, bem como Fernanda Moro como a companheira está sem um mínimo de dramaticidade, de fraca atuação, longe de uma pessoa sofrida no exílio. Porém o ator uruguaio Cesar Trancoso está sobrando no filme, tem carisma e não precisa de comando, pois seu talento está sempre fluindo.

Em Teu Nome está longe de ser um grande filme, embora não seja um fracasso total, decepciona pelo que se esperava dele, apesar de arrastar-se em algumas cenas, falta o clímax e o envolvimento no drama, pois não podemos esquecer que estamos no meio da maior ditadura do Brasil, sob os auspícios o General Médici, em plena década de 70. Há a explosão de outro golpe na América, desta vez no Chile, sob o comando de outro general, o Pinochet, um dos maiores sanguinários que passaram pela Terra, fuzilando pessoas inocentes ou que tinham ideias contrárias ao regime, em pleno Estádio Nacional.

Mas no filme de Nascimento a emoção está ausente, a profundidade fica distante e os fatos acontecem linearmente. Poderia se inspirar no talvez maior filme sobre a ditadura no Brasil, o extraordinário Pra Frente, Brasil (1983), de Roberto Farias, onde o futebol é usado como símbolo de anestésico de um povo embriagado pela conquista da Copa do Mundo de 1970 , no México, enquanto isso os presos políticos eram torturados barbaramente na celas ao som dos gols de Pelé, Tostão e Jairzinho. Outro filme recente que mostra bem as cicatrizes abertas da ditadura militar, embora muito contestado tem seus méritos, Lula, o Filho do Brasil (2009), de Fábio Barreto. Ainda que existisse alguma propaganda política, não pode ser excluídas as virtudes de apresentar uma nação conturbada e sugada pelo estado de exceção, onde os direitos políticos inexistiam, passando longe de uma plena democracia.

Nascimento conduz Em Teu Nome de forma rasa sem grandes voos. Os fatos se sucedem, com acontecimentos que deveriam ser priorizados, mas acabam por se banalizarem, pois não há o convencimento. Fica a ditadura militar numa esfera de planície, sem um avanço crítico contundente, mais na base de depoimentos pessoais, como se fosse algo instantâneo. Bona diz que não se arrependeu, mas as sequelas não chegam a aparecer num horizonte de contestação, sobrando uma frase forte da jovem torturada: "Tira a roupa, fique nua". E Nascimento continua devendo um bom filme.