quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Mal Não Existe

 

A Natureza Ameaçada

Ryüsuke Hamaguchi é um dos cineastas mais importantes do Japão na atualidade, principalmente depois de se consagrar com Drive My Car (2021), justamente premiado como Melhor Filme Internacional no Oscar, e também levou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes. Teve o sucesso merecido ao mesclar teatro com cinema numa perfeita estrutura cênica na montagem e edição de três horas de duração. A lenta trajetória o torna admirável e reflexivo ao adaptar livremente para a telona um conto homônimo do livro Homens Sem Mulheres, do famoso escritor conterrâneo Haruki Murakami. Um filme contemplativo das viagens para o interior de cada personagem com uma imensidão infinita de sentimentos abalados. Presos a um passado, onde as amarras parecem não poder libertá-los, ou por consequência fazer entender de vez o destino traiçoeiro daqueles sentimentos doloridos. Poucos gestos ou confissões, mas significativos, para revelar as complexas dúvidas e a melancolia incrustada naqueles dois seres humanos que carregam emoções reprimidas que assombram e reduz a capacidade de lucidez. Elementos intrínsecos não faltam para a construção psicológica e suas complexidades dos personagens focados numa saga sobre perdas, danos, culpas, arrependimentos e renovações de um extraordinário drama familiar dos desajustes do amor até a solidão implacável pelas decepções e sofrimentos existenciais.

O diretor está de volta com O Mal Não Existe, vencedor do Grande Prêmio do Júri e do Prêmio da Crítica no Festival de Veneza. Com um roteiro enxuto que traz sua assinatura, pode ser encaixado no gênero do ecodrama mesclado com fábula adulta, por ser provocativo e contemplativo sobre a preservação da natureza num meio ambiente invadido por pessoas inescrupulosas de um capitalismo selvagem pós-pandemia, destruidor e sem limites. Já no longo prólogo o espectador é colocado no meio da floresta em contato direto com as árvores, as brechas entre galhos e folhagens, o chão, e a natureza deslumbrante pelos movimentos da câmera. Uma crítica política e social na construção de um panorama denso com muito realismo para contar sobre um projeto escuso de ameaça pelos planos de uma empresa para um glamping na região, ou seja, acampamentos luxuosos destinados a turistas que desejam se isolar em florestas através de cabanas. Vai de encontro à defesa ferrenha do ecossistema bem defendido por Takumi (Hitoshi Omika) que mora com sua filha, Hana (Ryo Nishikawa), numa casinha na aldeia de Mizubiki, perto de Tóquio. O protagonista, na parte inicial da história, mostra como leva sua vida pacata e tranquila, cortando árvores velhas e secas com uma motosserra e picando lenha com um machado, coleta água límpida num córrego com seu curso normal, levando para os demais moradores, entre eles a dona de um pequeno restaurante de comida caseira, como uma poesia nos seus encantos, sob as lentes das imagens fascinantes do fotógrafo Yoshio Kitagawa.

A luta de uma comunidade contra a invasão humana corporativa e seus objetivos financeiros é o fator de tensão na história. O fatídico projeto é apresentado pelos despreparados representantes de uma agência de talentos Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), como na apresentação da “fuga” para se conectar com a natureza, com mudanças estruturais do curso da água e os esgotos cloacais. A pressa para concluir os negócios está estampada na arrogância do empresário interessado com artimanhas sem ética e sem escrúpulos para não perder os subsídios governamentais. Não conseguem convencer, num primeiro momento, os moradores em uma tensa e reveladora assembleia. O conflito de ideias e interesses são flagrantes no panorama dos originários expondo todas as suas preocupações diante da interferência externa e agressiva ao local preservado com um santuário natural que sofreria um desequilíbrio da natureza. O que pode ser bom para a empresa que visa turistas almejando apenas o lucro rápido acaba sendo um pesadelo para os nativos ao afetar diretamente suas vidas. A convivência ficará insustentável para sobrevivência e irá marcar fundamentalmente como elemento de mudança para a ruptura no relacionamento e a simbiose do ecossistema natural e o homem na subsistência dentro da aldeia. Remete com muita similitude e astúcia para a temática abordada no badalado filme Eo (2022), do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, e se aproxima ainda mais do drama perturbador da Islândia Lamb (2021), do diretor Valdimar Jóhannsson, retratando a revolta da natureza agredida de maneira egoísta, sórdida e pusilânime.

Hamaguchi conduz a narrativa com muita leveza, com cenas de bons momentos cômicos e de mordaz ironia, embora a sensação de desconforto seja evidente em um cenário de conflito iminente que cresce diante dos atrativos opostos até se tornarem insustentáveis. Os interesses se contrapõem e a ecologia reage na iminência do atentado à fauna e à flora. A filha do personagem central passeia pela floresta em harmonia com a natureza numa relação afetiva dela com os veados e corças, até desaparecer misteriosamente. A violência explode no desfecho deste drama denso e sombrio com crueldade nos pequenos detalhes, sem se afastar da contemplatividade e da discussão climática e provocativa como um alerta geral para o olhar no futuro. O ritmo lento da tensão pelo silêncio constante leva para um grau de imprevisibilidade permanente ao conduzir para uma surpresa que está por acontecer a qualquer momento na reviravolta surpreendente do roteiro para um final impactante que permite interpretações diferentes. O Mal Não Existe é um filme contagiante e traz na sua essência o lado nebuloso de um certo mistério no bojo da narrativa. Um epílogo catártico, porém com o viés redentor e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos dos campos, árvores e animais decorrentes do ecossistema. Soa como um soco no estômago do espectador para sair da zona de conforto. Qualquer ação violenta abrupta haverá uma resposta de punição à humanidade pela revolta do meio ambiente vilipendiado. Um aceno de que a natureza acusou o golpe das armadilhas que foram impostas numa magnífica reflexão sobre as consequências diante da interferência da dita civilização.