sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O Festival do Amor

 

As Escolhas

Woody Allen reaparece no início deste ano em sua trajetória de comédias de costumes dramáticas, mantendo-se fiel no sarcasmo e na sutil ironia fina como marcas registradas de sua extensa filmografia, por ser um dos melhores cineastas em atividade no mundo. O Festival do Amor é o 51º. longa-metragem do diretor e roteirista que nos remete para a lenda do vinho: “Quanto mais velho, melhor”. Reprisando elementos dos filmes anteriores: Roda Gigante (2017), Café Society (2016) e Homem Irracional (2015), novamente não atua, mas mantém o vigor e a capacidade de construção de um cinema voltado para as inquietações angustiantes do cotidiano e a análise dele mesmo através desta boa história de amores e desamores contextualizada no Festival Internacional de Cinema de San Sebastián, na Espanha, nesta linda cidade turística na Baía de Biscaia, no montanhoso País Basco. Mescla elementos de pessimismo com algum otimismo, passando uma realidade distante com devaneios que desembocam em pesadelos, pela narrativa de relacionamentos extraconjugais que acabam influenciando a dinâmica do casamento do casal protagonista. Em meio das tensões românticas com traições e descobertas, o longa explora um debate sobre os caminhos do próprio cinema e suas manifestações políticas indo ao encontro da arte, com posições e divergências dos personagens acerca da temática.

A penúltima realização deste incorrigível cineasta romântico-nostálgico foi Um Dia de Chuva em Nova Iorque (2018), onde focava um casal de jovens que planejou uma viagem à Nova Iorque. Ao chegar lá, os planos mudam, pois a moça descobre a possibilidade de fazer uma entrevista com um famoso cineasta, e o rapaz acaba encontrando a irmã de uma antiga namorada. Durante o passeio, eles descobrem novas paixões e oportunidades únicas de vivenciarem fortes emoções contidas. Agora, em O Festival do Amor, transparece quase que uma espécie de continuação do tema retratado anteriormente. Mort Rifkin (Wallace Shawn), alter ego de Allen, é um ex-professor de cinema especializado nos clássicos, e escritor frustrado que não termina nenhum livro. Ele acompanha a esposa Sue (Gina Gershon), uma assessora de imprensa a serviço das estrelas no festival para o lançamento do novo filme do jovem e promissor diretor francês Philippe (Louis Garrel). O envolvimento cada vez mais próximo de sua mulher acarreta em ciúmes e desconfiança de que os dois estão tendo um caso, faz com que se distancie. Procura a médica espanhola Jo Rojas (Elena Anaya), casada com um pintor traidor e amalucado, Tomás (Enrique Arce), arruma pretextos absurdos para marcar sucessivas consultas com a profissional. Logo, o envolvimento é inevitável entre os traídos e uma relação de amizade e amor platônico fica estreita com pitadas de flertes.

Numa visita à filmografia de Allen, Zelig (2003) é uma de suas das obras-primas; bem como se vislumbra uma retomada do inesquecível A Rosa Púrpura do Cairo (1985), talvez seu maior filme, naquela que se consagrou como cena antológica do cinema, a saída do herói da tela indo ao encontro da garçonete que assiste pela quinta vez a película para fugir do martírio de sua vida sem graça. Porém, O Festival do Amor, assim como as realizações anteriores, tenta se aproximar de suas melhores obras ao focar nas perturbações existenciais do escritor em crise de criação, hipocondríaco e neurótico. Critica o cinema atual pelos favorecimentos à indústria cinematográfica decorrente de uma forte influência econômica de transformação do mercado. Defende e imagina em devaneios a gradiloquência dos mestres europeus a quem faz tributos, tais como: Fellini em Oito e Meio (1963), John Ford em Rastros de Ódio (1956), Orson Wells em Cidadão Kane (1941) e Luis Buñuel em O Anjo Exterminador (1962), da Nouvelle Vague francesa como Godard em Acossado (1960) e Truffaut em Jules e Jim- Uma Mulher para Dois (1962), ou ainda as obras existenciais sobre a morte e velhice que inspiraram Allen, do genial Ingmar Bergman em Morangos Silvestres (1957), O Sétimo Selo (1957) e Persona (1966). Uma amostragem da crise e dos contrastes de interesses que geram abismos, mas que não isenta sequer Allen de fazer uso e lançar um olhar sobre o turismo das lindas praias paradisíacas da Espanha.

Uma comédia deslumbrante visualmente pelo fascínio da fotografia do italiano Vittorio Storaro três vezes vencedor do Oscar: O Último Imperador, Apocalypse Now e Reds, já havia feito parceria com Allen em Café Societ e Roda Gigante. Ressaltar a beleza da cidade espanhola que serviu de locação para mostrar o contraste do mar distante romantizado com a linda arquitetura, todo um conjunto para as reflexões do protagonista. Quase uma fábula sobre pessoas sonhadoras e a impossibilidade da felicidade desfeita pelas circunstâncias periféricas que rondam os destinos marcados através dos diálogos nos encontros e desencontros. Habilmente é formado um quadrilátero amoroso, outra marca do cineasta, onde os desejos giram e a verdade tomará contornos na essência dos vínculos afetivos diante das desilusões. Os corações vacilam na paixão, como de Sue que tem um romance não tão secreto. O painel de elementos neuróticos e de fracassos do cotidiano irão formar motivos forjados para as fantasias serem superadas pela sombria realidade do distúrbio familiar. Reflete as esperanças e as desilusões dos destinos cruzados que irão aos poucos formatando o imbróglio de situações e enroscos que se apresentam na urdida trama. Explora os meandros da alma nesta contribuição interessante para o cinema voltado para os acontecimentos rotineiros da paixão desenfreada, os destroçamentos do ser humano e o pessimismo com o mundo das pessoas amarguradas, pelo olhar profundo deste assumido realizador bergmaniano. Ironiza a vida pelos vestígios eivados de perturbações latentes reveladas, mas isso não é o todo, apenas um resultado através da busca do seu significado.

O Festival do Amor tem uma harmonia paradoxal na essência existencial, mas principalmente na felicidade rompida do sonho pela realidade traiçoeira do destino. É difícil apontar, ou achar, algum defeito deste veterano de 86 anos que constrói mais um filme revelador, através de planos longos com aproximações e afastamentos da câmera no ponto certo para observar os personagens inquietos pelas andanças e desatinos do cotidiano. Um mergulho de boa profundidade nos relacionamentos despudorados, nas traições com método de sedução convencional ou não. As relações interpessoais e os romances fracassados servem de alicerce para explorar uma narrativa densa e presente como uma fórmula repetida que deu certo. Os personagens de Allen muitas vezes são reescritos, às vezes com razoáveis resultados, e em outros se superam. Mais uma vez parte dos desajustes do amor e da paixão para ingressar na melancólica solidão do amargo romance, como no desfecho que o coração direciona o caminho da agridoce desilusão amorosa, decepções e sofrimentos do sonho. Regado com apreciável sutileza e ironia a analogia pertinente nas colocações para armadilhas lançadas com primazia no enredo, como típicas características da sensibilidade do velho mestre.

Nenhum comentário: