terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Pieces of a Woman

Dor Redentora

O ano começa em grande estilo com a estreia em janeiro na Netflix do drama familiar Pieces of a Woman (tradução livre: “pedaços de uma mulher”), vindo dos EUA em coprodução com o Canadá e a Hungria. Uma abordagem contundente da jornada emocional de uma mãe que acaba de perder sua bebê e os desdobramentos da dor imensurável e os resquícios da culpa ilimitada, sem que haja um alento para atenuar o sofrimento que arde como uma ferida aberta latejante. A direção exemplar é do húngaro Kornél Mundruczó, que havia dirigido anteriormente Deus Branco (2014), vencedor da mostra paralela Um Certo Olhar, do Festival de Cannes. O longa atual rendeu merecidamente o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza do ano passado para a britânica Vanessa Kirby (conhecida por interpretar a princesa Margaret na primeira fase do seriado The Crown) pela impecável e convincente atuação como Martha Carson, que precisa lidar com o luto e suas fases inerentes. Começa pela negação, passa pela ira, atinge o estado de depressão profunda e finalmente a aceitação como último recurso do mistério da morte abrupta que assolou sua família.

Kata Wéber, esposa do diretor, escreveu o roteiro inspirado em fatos reais pessoais do casal. Em entrevista à AFP, o cineasta revela que eles queriam compartilhar estas experiências com o público em geral, na tentativa de que a arte fosse o melhor remédio para a dor que vivenciaram. O filme retrata de maneira digna as consequências nas relações matrimoniais da protagonista e sua ruptura gradual com o marido Sean Carson (Shia LeBeouf- envolvido numa acusação de agressão e abuso sexual na época da produção do filme) e a hostilidade enraizada pelas marcas de uma situações mal resolvidas no passado com a mãe (Ellen Burstyn), numa luta diária e permanente para que seu mundo de sonhos e ilusões não desabe completamente. Os ingredientes são tristes na trajetória de Martha, que é surpreendida com a morte inesperada da bebê recém-nascida em um parto domiciliar realizada por uma parteira profissional (Molly Parker), por opção da própria gestante. O prólogo tem angustiantes trinta minutos da preparação para o parto, com contrações, bolsa rompida, enjoos, exercícios, medo, estresse e o coração do feto batendo. Tudo com a ajuda solidária de Sean, que sai numa busca desatinada para encontrar uma ambulância para levar a parturiente para o hospital quando a situação se torna crítica. Cria-se um clímax de alta tensão, bem conduzido em plano único pelo realizador, que não cai em armadilhas melodramáticas.

Com forte influência da filmografia dos irmãos Dardenne e sua mise-en-scène, especialmente dos longas O Filho (2002) e A Criança (2005), o bom roteiro dá um salto do dia fatídico para o retorno ao trabalho da silenciosa mãe. A humilhação que ouve de conversas entrecortadas é como uma salvaguarda às avessas que encara como um resgate pelo castigo que até entende ser merecedora. A vida segue após a tragédia, as marcas são recentes e dilacerantes da perda da criança. As acusações de culpa da profissional são marteladas pelo marido e pela mãe da personagem central. O casal passeia de carro, mas as lembranças das causas e efeitos continuam como consequências da morte sendo ventiladas pelos contrastes do laudo da autópsia colocado em xeque. Cada situação nova é um dilema para embates verbais, como a negativa de Sean e da sogra em doar a criança para pesquisa médica. O conflito familiar se estabelece pela abordagem sem subterfúgios sob o efeito da raiva, do ódio e da ética sendo colocados no jogo, através do olhar maternal de uma doce inveja para outras crianças no shopping e no transporte público como elementos de pura melancolia.

No meio deste turbilhão de problemas que povoa a cabeça de Martha, ela terá de harmonizar a consciência e relembrar os motivos nefastos perturbadores que causaram seu afastamento do marido, como o desmonte do quarto da filha como forma de agressão ao pai que quer manter viva uma imagem para não esquecer o sonho roubado. O desprezo e a rejeição ao sexo são outros elementos que só agravam a crise matrimonial. Surgem as traições de parte a parte, as agressões físicas e verbais atingindo o ápice do relacionamento para o desmoronamento do vínculo ainda resistente. A reunião de família vira uma lavanderia para acusações mútuas e sugestões para tratamento psicológico. Culmina numa defesa catártica sobre os culpados pela tragédia, se é que existem, como insinua Mundruczó. São combustíveis inflamáveis para o forte impacto emocional que desestruturou razões de viver para manter um profundo remorso. O abalo sísmico familiar vai dissipando os enigmas com revelações devastadoras para renúncia à felicidade, através de tons agressivos. Há uma explosão de raiva e ódio desmesurada que aflora da dor intensa e do isolamento progressivo para o entendimento de uma situação caótica. A memória traz à tona os fantasmas do dia do infortúnio e alguns resquícios pretéritos que deixam uma agonia lancinante, através de transtornos psicológicos que marcaram definitivamente a protagonista.

Pieces of a Woman mostra as imagens que povoam um novo horizonte em reconstrução da instransponível amargura, pela derrocada do equilíbrio que assombra Martha, por espectros que ainda rondam e remoem seus pensamentos atormentados. Os atritos entre ela e a matriarca, uma espécie de resgate da infância, estão presentes nos dilemas das relações familiares nos sacrifícios indesejados que soam como elementos punitivos redentores de uma alma destroçada pela perda dilacerante. A frieza que acompanha a protagonista, uma pessoa sombria numa iminente situação autodestrutiva, está presente na narrativa imparcial sobre as causas e efeitos. O julgamento no tribunal da parteira pela acusação de culpa ao substituir a colega é o desfecho que faltava para a redenção final entre mãe filha. Distante dos clichês que infestam os melodramas fáceis, faz com que os 126 minutos passem voando num filme de anti-heróis, sem sentimentalismos piegas que possam descambar para as facilidades abomináveis em realizações encontradas em obras menores. Um retrato duro com ênfase pelo descompasso do estado físico com o psicológico, com voos rasantes desgovernados, principalmente no remorso carregado em consonância com o vínculo de um fardo insustentável e pesado com dimensões eloquentes neste painel de frustrações e vazios existenciais. O magnífico drama reserva um epílogo de esperança no futuro através da árvore da vida com suas maçãs reveladoras na relação conturbada de outrora entre mãe e filha.

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