quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Vermelho Sol



Hipocrisia e Opressão

Vem da Argentina em coprodução com o Brasil, França, Holanda e Alemanha um típico filme perturbador sobre os momentos que antecederam o golpe de Estado ocorrido em 1976 no país vizinho. O drama sociopolítico Vermelho Sol registra com sutilezas e sugestões o ambiente do ano de 1975, logo após a morte do presidente Juan Domingo Perón e a ascensão ao governo da esposa e vice Isabelita Perón, com a consequente deposição da mesma, e a instalação da Junta Militar sob a batuta do sanguinário general Jorge Rafael Videla. A direção é do jovem promissor Benjamín Naishtat, de 33 anos, que nasceu após o fim da democracia e a decretação do estado de sítio com uma repressão violenta contra seus compatriotas, tendo como efeito o exílio de sua família na França, com alguns voltando e outros familiares ficando por lá mesmo. Guardou na memória sua casa da infância abandonada sendo saqueada e queimada por vizinhos em Córdoba, que levaram tudo o que podiam, sendo objeto de inspiração para os fatos ocorridos no desenrolar da trama de sua realização com forte influência no passado de reminiscências.

O realizador estreou na ficção com a mescla de suspense e drama familiar Bem Perto de Buenos Aires (2014). Retratou as ações cotidianas dos personagens que transitam ou moram num cenário de dúvidas pela perda da tranquilidade de um local costumeiramente pacato, que se deixa abalar pelo instinto e pelo sentido sensorial repassado para a plateia como um componente de fatos estranhos que poderia se desenrolar trazido pela escuridão, mas com o viés da insegurança pela luta de classes. Mostrava um helicóptero da polícia sobrevoando uma área vizinha na periferia de Buenos Aires de um condomínio horizontal luxuoso, dando o aviso de desocupação aos invasores. O diretor admitiu ter se inspirado no soberbo O Pântano (2001), da conterrânea Lucrecia Martel, mas na realidade sua obra deriva mais para o badalado O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, ao abordar classes sociais diferentes com personagens de lados opostos entre a pobreza e a elite. Não é por acaso que trouxe para fotografar seu último longa o brasileiro Pedro Sotero, que tem no currículo Aquarius (2016) e o drama brasileiro já mencionado, que rendeu ao fotógrafo o prêmio máximo no Festival de San Sebastián, sendo também premiados o diretor e o ator principal.

Vermelho Sol tem um enredo bem urdido com um roteiro enxuto do próprio cineasta, no qual desfila seus personagens na tela, dando estrutura e cumplicidade para alguns, desprezo e envolvimento velado em outros. Claudio (Darío Grandinetti, de sóbria interpretação, é o mesmo de Fale com Ela e Relatos Selvagens) é um veterano advogado, que atua tanto nas causas éticas tanto quanto nas antiéticas pela corrupção assumida, como na cena da casa adquirida pelo meio de um usucapião forjado. Ele vive uma vida calma, confortável, em forma de harmonia com a filha adolescente e sua esposa, Susana (Andrea Frigerio), numa pacata cidade interiorana onde aparentemente poucas coisas acontecem. Numa noite qualquer, está em um tradicional restaurante sentado sozinho à espera da mulher para jantar, quando surge um estranho (Diego Cremonsesi) com quem travará uma acirrada discussão por uma mesa e acabará de maneira arrogante humilhando o desafeto. Haverá desdobramentos na saída do estabelecimento com um desfecho trágico já no magnífico prólogo da realização, que causará uma virada de rumo na rotina do protagonista.

Com o surgimento do detetive particular chileno, Sinclair (Alfredo Castro, de ótima atuação, conhecido pelos papéis marcantes em A Cordilheira e Cachorros), contratado para investigar o desaparecimento de um rapaz da comunidade, o causídico irá se inteirar do movimento repressor que está acontecendo. Ou não imaginava por alienação e desconhecimento de causa, ou por hipocrisia sob o manto da acomodação da tranquila zona de conforto. Os infortúnios irão aflorar e o anuviamento começa então a se dissipar paulatinamente. O detetive faz colocações pontuais no encontro dos dois no deserto sobre o período cinzento que está tomando conta da Argentina com a tomada do poder pelos militares, com insinuações evidentes da aparelhagem repressora e o abalo que a sociedade civil está à mercê do destino que traria reflexos devastadores. A gangue juvenil que sequestra e faz sumir um jovem inocente por uma situação sentimental é outra evidência dos rumos tenebrosos que se aproximam. Mas é mais reveladora ainda a cena do eclipse em que o sol fica sombrio como um singular prenúncio metafórico dos novos tempos de terror que estão chegando.

Um painel triste e vergonhoso de uma época a ser esquecida pelo povo argentino, diante de uma narrativa vigorosa sobre o turbulento período dos anos de chumbo com as tensões sociais se sucedendo com ingredientes sutis num lugarejo longínquo de uma província do interior, na qual as regras da sociedade mudaram drasticamente. Não se podia dizer tudo o que se pensava, diante da pressão que faria as pessoas se sentirem vigiadas, tendo como corolário a fuga dali para nunca mais voltar. Alternativas sorrateiras eram ditas, entre elas: foram passear, ou alegações de que ficaram doentes, porém a maioria desaparecia para sempre. Havia uma ode aos Estados Unidos como solidários e amigos, marcante no episódio dos vaqueiros norte-americanos que eram o elo de amizade entre os dois países circunstancialmente alinhados com o mesmo propósito.

A imprensa local louvava as questões otimistas, exceto um jornalista que é torpedeado numa resposta em tom de pergunta atemorizante. A maioria não questionava a intervenção branca e invasiva com o viés da interferência no governo vigente e democrático, através de um apoio logístico que se tornaria um genocídio sangrento com sequelas duradouras e temerárias para quem era contrário ao regime de exceção, numa estimativa de trinta mil entre mortos e desaparecidos. Dissimulações e mentiras frequentes andavam juntas nos arranjos para obscurecer a verdade ficar completamente escondida. O pragmatismo daquele suposto homem digno é uma farsa, como na representação do show da mágica, como os rombos na sua estrutura psicológica prestes a desmoronar, pois são sustentadas por pilares podres escondidos atrás de uma moral de bons costumes estereotipados, pela prepotência num sistema em que está presente a derrota vestida de uma violência humilhante num ambiente arruinado, mas abastecido pela agressividade e barbárie. Vermelho Sol mergulha em imagens e diálogos com força expressiva para qualificar esta admirável realização sobre a opressão em consonância com a hipocrisia numa requintada reflexão política e social.

Nenhum comentário: